(Continuação da leitura do Livro "Boa Nova"
de Humberto de Campos
psicografada por Chico Xavier)
Jesus havia
terminado uma de suas pregações na praça pública, quando percebeu que a
multidão se movimentava em alvoroço. Alguns populares mais exaltados
prorrompiam em gritos, enquanto uma mulher ofegante, cabelos desgrenhados e
faces macilentas, se aproximava dele, com uma súplica de proteção a lhe sair
dos olhos tristes. Os muitos judeus ali aglomerados excitavam o ânimo geral,
reclamando o apedrejamento da pecadora, na conformidade das antigas tradições.
Solicitado, então,
a se constituir juiz dos costumes do povo, o Mestre exclamou com serenidade e
desassombro, causando estupefação aos que O ouviram:
– Aquele que estiver
sem pecado atire a primeira pedra.
Por toda a
assembléia se fez sentir uma surpresa inquietante. As acusações morreram nos
lábios mais exaltados. A multidão ensimesmava-se, para compreender a sua
própria situação. Enquanto isso, o Mestre pôs-se a escrever no solo
despreocupadamente.
Aos poucos, o local
ficara quase deserto. Apenas Jesus e alguns discípulos lá se conservavam, tendo
ao lado a mulher a ocultar as faces com as mãos.
Em dado instante, o
Mestre Divino ergueu a fronte e perguntou à infeliz:
– Mulher, onde
estão os teus juízes?
Observando que a
pecadora lhe respondia apenas com o olhar reconhecido, onde as lágrimas
aljofravam num misto de agradecimento e alegria, Jesus continuou:
– Ninguém te
condenou? Também eu não te condeno. Vai e não peques mais.
A infeliz criatura
retirou-se, experimentando uma sensação nova no espírito. A generosidade do
Messias lhe iluminava o coração, em claridades vivas que lhe banhavam a alma
toda. Mas, enquanto a pecadora se retirava, presa de intensa alegria, os poucos
discípulos que se encontravam junto do Senhor não conseguiam ocultar a
estranheza que lhes causara o seu gesto. Por que não condenara ele aquela
mulher de vida censurável aos olhos de todos? Não se tratava de uma adúltera?
Nesse ínterim, João se aproximou e interrogou:
– Mestre, por que
não condenastes a meretriz de vida infame?
Jesus fixou no
discípulo o olhar calmo e bondoso e redargüiu:
– Quais as razões
que aduzes em favor dessa condenação? Sabes o motivo por que essa pobre mulher
se prostituiu? Terás sofrido alguma vez a dureza das vicissitudes que ela
atravessou em sua vida? Ignoras o vulto das necessidades e das tentações que a
fizeram sucumbir a meio do caminho. Não sabes quantas vezes tem sido ela objeto
do escárnio dos pais, dos filhos e dos irmãos das mulheres mais felizes. Não
seria justo agravar-lhe os padecimentos infernais da consciência pesarosa e sem
rumo.
– Entretanto –
exclamou João, defendendo os princípios da lei antiga – ela pecou e fez jus à
punição. Não está escrito que os homens pagarão, ceitil por ceitil, os seus
próprios erros?
O Mestre sorriu sem
se perturbar e esclareceu:
– Ninguém pode
contestar que ela tenha pecado; quem estará irrepreensível na face da Terra? Há
sacerdotes da lei, magistrados e filósofos, que prostituíram suas almas por
mais baixo preço; contudo, ainda não lhes vi os acusadores. A hipocrisia
costuma, campear impune, enquanto se atiram pedras ao sofrimento. João, o mundo
está cheio de túmulos caiados. Deus, porém, é o Pai de Bondade Infinita que
aguarda os filhos pródigos em sua casa. Poder-se-ia desejar para a pecadora
humilde tormento maior do que aquele a que ela própria se condenou por tempo
indeterminado? Quantas vezes lhe tem faltado pão à boca faminta ou a
manifestação de um carinho sincero à alma angustiada? Raras dores no mundo
serão idênticas às agonias de suas noites silenciosas e tristes. Esse o seu
doloroso inferno, sua, aflitiva condenação. E é que, em todos os planos da
vida, o instituto da justiça divina funciona, natura!mente, com seus princípios
de compensação.
“Cada ser traz
consigo a fagulha sagrada do Criador e erige, dentro de si, o santuário de sua
presença ou a muralha sombria da negação; mas só a luz e o bem são eternos e,
um dia, todos os redutos do mal cairão, para que Deus resplandeça no espírito
de seus filhos. Não é para ensinar outra coisa que está escrito na lei – “Vós
sois deuses!”. Porventura, não sabes que a herança de um pai se divide entre os
filhos em partes iguais? As criaturas transviadas são as que não souberam
entrar na posse de seu quinhão divino, permutando-o pela satisfação de seus
caprichos no desregramento ou no abuso, na egolatria ou no crime, pagando alto
preço pelas suas decisões voluntárias. Examinada a situação por esse prisma,
temos de reconhecer no mundo uma vasta escola de regeneração, onde todas as
criaturas se reabilitam da traição aos seus próprios deveres. A Terra,
portanto, pode ser tida na conta de um grande hospital, onde o pecado é a
doença de todos; o Evangelho, no entanto, traz ao homem enfermo o remédio
eficaz, para que todas as estradas se transformem em suave caminho de redenção.
“É por isso que não
condeno o pecador para afastar o pecado e, em todas as situações, prefiro
acreditar sempre no bem. Quando observares, João, os seres mais tristes e
miseráveis, arrastando-se numa noite pejada de sombra e desolação lembra-te da
semente grosseira que encerra um gérmen divino e que um dia se elevará do seio
da terra para o beijo de luz do Sol.”
Terminada a
explicação do Mestre, o filho de Zebedeu, deixando transparecer na luz do olhar
a sua profunda admiração pôs-se a meditar nos ensinamentos recebidos.
***
Muito tempo ainda
não transcorrera depois desse acontecimento, quando Jesus subiu de Cafarnaum
para Jerusalém, acompanhado por alguns de seus discípulos. Celebravam-se festas
tradicionais entre os judeus. O Messias chegou num sábado, sob a fiscalização
severa dos espíritos rigoristas de sua época. Não foram poucos os paralíticos
que o cercaram, ansiosos pelo benefício de sua virtude salvadora.
Escandalizando os fanáticos, o Mestre orava e consolava na sua jornada de
gloriosa redenção. Explicando que o sábado fora feito para o homem e não o
homem para o sábado, enfrentava sorridente as preocupações dos mais exigentes.
Vendo tantos cegos
e aleijados aglomerados à passagem, Tiago o interpelou:
– Mestre, sendo
Deus tão misericordioso, porque pune seus filhos com defeitos e moléstias tão
horríveis?...
– Acreditas, Tiago
– respondeu Jesus – que Deus desça de sua sabedoria e de seu amor para punir
seus próprios filhos? O Pai tem o seu plano determinado com respeito à criação
inteira; mas dentro desse plano, a cada criatura cabe uma parte na edificação,
pela qual terá de responder. Abandonando o trabalho divino, para viver ao sabor
dos caprichos próprios, a alma cria para si a situação correspondente,
trabalhando para reintegrar-se no plano divino, depois de se haver deixado
levar pelas sugestões funestas, contrárias à sua própria paz.
João compreendeu
que a Palavra do Messias era a confirmação dos ensinamentos que já ouvira de
seus lábios, na tarde em que a multidão exigia o apedrejamento da pecadora.
Afastaram-se, em
seguida, do Tanque de Betsaida cujas águas eram tidas, em Jerusalém, na conta
de miraculosa e onde o Mestre fizera andar paralíticos, dera vista a cegos e
limpara leprosos. Na companhia de Tiago e João, o Senhor encaminhou-se para o
templo, onde um dos paralíticos que ele havia curado relatava o acontecido,
cheio de sincera alegria. Jesus aproximou-se dele e deixando entrever aos seus
discípulos que desejava confirmar os ensinamentos sobre pecado e punição,
falou-lhe abertamente, como se lê no texto evangélico de João: – “Eis que estás
são. Não peques mais, para que te não suceda coisa pior.”
***
Desde que esses
ensinos foram dados, novas idéias de fraternidade povoaram o mundo, com
respeito aos transviados, aos criminosos e aos inimigos, atingindo a própria
organização política dos Estados.
O Império Romano
vulgarizara os mais nefandos processos de regeneração ou de vingança. Escravos
ignorantes eram pasto das feras, nos divertimentos públicos, pelas faltas mais
insignificantes nas casas dos patrícios. Só de uma vez, trinta mil desses
servos, a quem se negava qualquer bem do espírito, foram crucificados numa
festa, próximo aos soberbos aquedutos da Via Ápia. Os açoites humilhantes eram
castigo suave.
Entretanto, desde a
tarde em que Jesus se encontrou com a pecadora em frente da multidão, um
pensamento novo entrou a dominar aos poucos o espírito do mundo. A substância
evangélica do ensino inolvidável penetrou o aparelho judiciário de todos os
povos. A sociedade começou a compreender suas obrigações e procurou segregar o
criminoso, como se isola um doente, buscando auxiliar-lhe a reforma definitiva,
por todos os meios ao seu alcance. Os menores delinqüentes foram amparados
pelas numerosas escolas de regeneração. Todo o sistema da justiça humana
evolveu para os princípios da magnanimidade, e os juízes modernos, lavrando
suas sentenças, sem nunca haverem manuseado o Novo-Testamento, talvez ignorem,
que procedem assim por ter sido Jesus o grande reformador da criminologia.
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