(Continuação da leitura do Livro "Boa Nova"
de Humberto de Campos
psicografada por Chico Xavier)
Entre a multidão que invariavelmente acompanhava a
Jesus nas pregações do lago, achava-se sempre uma mulher de rara dedicação e
nobre caráter, das mais altamente colocadas na sociedade de Cafarnaum.
Tratava-se de Joana, consorte de Cuza, intendente de Antipas, na cidade onde se
conjugavam interesses vitais de comerciantes e de pescadores.
Joana possuía verdadeira fé; entretanto, não conseguiu
forrar-se às amarguras domésticas, porque seu companheiro de lutas não aceitava
as claridades do Evangelho. Considerando seus dissabores íntimos, a nobre dama
procurou o Messias, numa ocasião em que ele descansava em casa de Simão e lhe
expôs a longa série de suas contrariedades e padecimentos. O esposo não
tolerava a doutrina do Mestre. Alto funcionário de Herodes, em perene contato
com os representantes do Império, repartia as suas preferências religiosas, ora
com os interesses da comunidade judaica, ora com os deuses romanos, o que lhe
permitia viver em tranqüilidade fácil e rendosa. Joana confessou ao Mestre os
seus temores, suas lutas e desgostos no ambiente doméstico, expondo suas
amarguras em face das divergências religiosas existentes entre ela e o
companheiro.
Após ouvir-lhe a longa exposição, Jesus lhe ponderou:
– Joana, só há um Deus, que é o Nosso Pai, e só existe
uma fé para as nossas relações com o seu amor. Certas manifestações religiosas,
no mundo, muitas vezes não passam de vícios populares nos hábitos exteriores.
Todos os templos da Terra são de pedra; eu venho, em nome de Deus, abrir o
templo da fé viva no coração dos homens. Entre o sincero discípulo do Evangelho
e os erros milenários do mundo, começa a travar-se o combate sem sangue da
redenção espiritual. Agradece ao Pai o haver-te julgado digna do bom trabalho,
desde agora. Teu esposo não te compreende a alma sensível? Compreender-te-á um
dia. É leviano e indiferente? Ama-o, mesmo assim. Não te acharias ligada a ele
se não houvesse para isso razão justa. Servindo-o com amorosa dedicação,
estarás cumprindo a vontade de Deus. Falas-me de teus receios e de tuas
dúvidas. Deves, pelo Evangelho, amá-la ainda mais. Os sãos não precisam de
médico. Além disso, não poderemos colher uvas nos abrolhos, mas podemos amanhar
o solo que produziu cardos envenenados, afim de cultivarmos nele mesmo a
videira maravilhosa do amor e da vida.
Joana deixava entrever no brilho suave dos olhos a
íntima satisfação que aqueles esclarecimentos lhe causavam; mas, patenteando
todo o seu estado dalma, interrogou :
– Mestre, vossa palavra me alivia o espírito atormentado;
entretanto, sinto dificuldade extrema para um entendimento recíproco no
ambiente do meu lar. Não julgais acertado que lute por impor os vossos
princípios? Agindo assim, não estarei reformando o meu esposo para o céu e para
o vosso reino?
O Cristo sorriu serenamente e retrucou:
– Quem sentirá mais dificuldade em estender as mãos
fraternas, será o que atingiu as margens seguras do conhecimento com o Pai, ou
aquele que ainda se debate entre as ondas da ignorância ou da desolação, da
inconstância ou da indolência do espírito? Quanto à imposição das idéias –
continuou Jesus, acentuando a importância de suas palavras – por que motivo
Deus não impõe a sua verdade e o seu amor aos tiranos da Terra? Por que não
fulmina com um raio o conquistador desalmado que espalha a miséria e a
destruição, com as forças sinistras da guerra? A sabedoria celeste não
extermina as paixões: transforma-as. Aquele que semeou o mundo de cadáveres
desperta, às vezes, para Deus", apenas com uma lágrima. O Pai não impõe a
reforma a seus filhos: esclarece-os no momento oportuno. Joana, o apostolado do
Evangelho é o de colaboração com o céu, nos grandes princípios da redenção. Sê
fiel a Deus, amando ao teu companheiro do mundo, como se fora teu filho. Não
percas tempo em discutir o que não seja razoável. Deus não trava contendas com
as suas criaturas e trabalha em silêncio, por toda a Criação. Vai!...
Esforça-te também no silêncio e, quando convocada ao esclarecimento, fala o
verbo doce ou enérgico da salvação, segundo as circunstâncias! Volta ao lar e
ama ao teu companheiro como o material divino que o céu colocou em tuas mãos
para que talhes uma obra de vida, sabedoria e amor!...
Joana do Cuza experimentava um brando alívio no
coração. Enviando a Jesus um olhar de carinhoso agradecimento, ainda lhe ouviu
as últimas palavras:
– Vai, filha!... Sê fiel!
***
Desde esse dia, memorável para a sua existência, a
mulher de Cuza experimentou na alma a claridade constante de uma resignação
sempre pronta ao bom trabalho e sempre ativa para a compreensão de Deus, como
se o ensinamento do Mestre estivesse agora gravado indelevelmente em sua alma,
considerou que, antes de ser esposa na Terra, já era filha daquele Pai que, do
Céu, lhe conhecia a generosidade e os sacrifícios. Seu espírito divisou em
todos os labores uma luz sagrada e oculta.
Procurou esquecer todas as características inferiores
do companheiro, para observar somente o que possuía ele de bom, desenvolvendo,
nas menores oportunidades, o embrião vacilante de suas virtudes eternas. Mais
tarde, o céu lhe enviou um filhinho, que veio duplicar os seus trabalhos; ela, porém, sem olvidar as recomendações de
fidelidade que Jesus lhe havia feito, transformava suas dores num hino de
triunfo silencioso em cada dia.
Os anos passaram e o esforço perseverante lhe
multiplicou os bens da fé, na marcha laboriosa do conhecimento e da vida. As
perseguições políticas desabaram sobre a existência do seu companheiro. Joana,
contudo, se mantinha firme. Torturado pelas idéias odiosas de vingança, pelas dívidas
insolváveis, pelas vaidades feridas, pelas moléstias que lhe verminaram o
corpo, o ex-intendente de Antipas voltou ao plano espiritual, numa noite de
sombras tempestuosas. Sua esposa, todavia, suportou os dissabores mais amargos,
fiel aos seus ideais divinos edificados na confiança sincera. Premida pelas
necessidades mais duras, a nobre dama de Cafarnaum procurou trabalho para se
manter com o filhinho, que Deus lhe confiara! Algumas amigas lhe chamaram a
atenção, tomadas de respeito humano. Joana, no entanto, buscou esclarecê-las,
alegando que Jesus, igualmente, havia trabalhado, calejando as mãos nos
serrotes de uma carpintaria singela e que, submetendo-se ela a uma situação de
subalternidade no mundo, se dedicara primeiramente ao Cristo, de quem se havia
feito escrava devotada.
Cheia de alegria sincera, a viúva de Cuza esqueceu o
conforto da nobreza material, dedicou-se aos filhos de outras mães, ocupou-se
com os mais subalternos afazeres domésticos, para que seu filhinho tivesse pão.
Mais tarde, quando a neve das experiências do mundo lhe alvejou os primeiros
anéis da fronte, uma galera romana a conduzia em seu bojo, na qualidade de
serva humilde.
***
No ano 68, quando as perseguições ao Cristianismo iam
intensas, vamos encontrar, num dos espetáculos sucessivos do circo, uma velha
discípula do Senhor amarrada ao poste do martírio, ao lado de um homem novo,
que era seu filho.
Ante o vozerio do povo, foram ordenadas as primeiras
flagelações.
– Abjura!... – Exclama um executar das ordens
imperiais, de olhar cruel e sombrio. Mas, a antiga discípula ao Senhor
contempla o céu, sem uma palavra de negação ou de queixa. Então o açoite vibra
sobre o rapaz seminu, que exclama, entre lágrimas: – “Repudia a Jesus, minha
mãe!... Não vês que nos perdemos?! Abjura!... por mim que sou teu filho!...”
Pela primeira vez, dos olhos da mártir corre a fonte
abundante das lágrimas. As rogativas do filho são espadas de angústia que lhe
retalham o coração.
– Abjura!... Abjura!
Joana ouve aqueles gritos, recordando a existência
inteira. O lar risonho e festivo, as horas de ventura, os desgostos domésticos,
as emoções maternais, os fracassos do esposo, sua desesperação e sua morte, a
viuvez, a desolação e as necessidades mais duras... Em seguida, ante os apelos
desesperados do filhinho, recordou que Maria também fora mãe e, vendo o seu
Jesus crucificado no madeiro da infâmia, soubera conformar-se com os desígnios
divinos. Acima de todas as recordações, como alegria suprema de sua vida,
pareceu-lhe ouvir ainda o Mestre, em casa de Pedro, a lhe dizer: – “Vai filha!
Sê fiel!” Então, possuída de força sobre-humana, a viúva de Cuza contemplou a
primeira vítima ensangüentada e, fixando no jovem um olhar profundo e
inexprimível, na sua dor e na sua ternura, exclamou firmemente:
– Cala-te, meu filho! Jesus era puro e não desdenhou o
sacrifício. Saibamos sofrer na hora dolorosa, porque, acima de todas as
felicidades transitórias do mundo, é preciso ser fiel a Deus!
A esse tempo, com os, aplausos delirantes do povo, os
verdugos incendiavam, em derredor, achas de lenha embebidas em resina
inflamável.Em poucos instantes, as labaredas lamberam-lhe o corpo envelhecido.
João de Cuza contemplou, com serenidade, a massa de povo que lhe não entendia o
sacrifício. Os gemidos de dor lhe morriam abafados no peito opresso. Os algozes
da mártir cercaram-lhe de impropérios a fogueira:
– O teu Cristo soube apenas ensinar-te a morrer? –
Perguntou um dos verdugos.
A velha discípula, concentrando a sua capacidade de
resistência, teve ainda forças para murmurar :
– Não apenas a morrer, mas também a vos amar!...
Nesse instante, sentiu que a mão consoladora do Mestre
lhe tocava suavemente os ombros, e lhe escutou a voz carinhosa e inesquecível:
– Joana, tem bom ânimo!... Eu aqui estou! ...
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