Gamal Abdul Gamal morava nos arredores de Jerusalém e gozava dos privilégios conferidos por Herodes Ântipas aos intermediários dos mercadores árabes, que, na época da Páscoa, abarrotavam o comércio eqüino da cidade com espécimes raros quão valiosos.
Abastado, construíra confortável vivenda nas terras férteis e verdes de Acra.
Embora odiado pelos judeus, por questões de pátria e religião, tinha acesso às altas rodas, à exceção, apenas, a determinados recintos do Templo.
Retraído por temperamento, Gamal, apesar das transações comerciais a que se dedicava, entregava-se com frequência a profundas meditações em torno dos problemas inquietantes da vida.
Não lhe passara despercebido o movimento reacionário da última Páscoa, que culminara na crucificação do revolucionário carpinteiro Galileu, segundo diziam, que incomodava a segurança de César, na Palestina...
Não podia olvidar que o perseguido, no auge dos sofrimentos oferecera um perdão espontâneo aos algozes, consoante afirmava todos os que presenciaram o hediondo espetáculo. E admirava-se daquele gesto heróico e sublime, por considerar-se incapaz de esquecer e desculpar os olhares de escárnio e as atitudes ríspidas com que os judeus o tratavam, em decorrência de sua ascendência ismaelita.
Certamente, conjecturava, aquele profeta estranho, assassinado em circunstâncias tão graves, era um Enviado dos Céus, tal o receio que inspirava entre os sacerdotes orgulhosos. Seus ensinos, fundamentados num amor jamais conhecido antes, abalavam fortemente os alicerces da decadente prática moisaísta. E, além disso, a auréola que O acompanhava de há muito, como consolidador da felicidade nos corações, atestava-lhe a procedência espiritual superior.
Por essas e outras razões que não saberia definir, sentiu-se incompreensivelmente ligado ao singular Rabi assassinado...
Quando teve ciência do Seu aparecimento, por diversas vezes – aos companheiros desanimados, inclusive numa formosa tarde, no lago de Genesaré –, desejou, fascinado por estranho fervor, participar daquele convívio, por um momento, embora, que fosse. Entretanto, com angústia interior, reconhecia a impossibilidade.
De princípio, receava o ódio contumaz que lhe votavam, bem como a todos os estrangeiros, os ortodoxos intransigente e, depois, pelas inconveniências que possíveis incidentes desagradáveis iriam acarretar-lhes em tão incômoda viagem, aos sítios ribeirinhos do lago.
Apesar de todos os empecilhos, continuou acalentando a esperança de encontrar aquele Mestre e quem muito se falava, aguardando ensejo próprio, à medida que as notícias da sua ressurreição empolgavam a cidade e os povoados...
De imaginação ardente e coração puro, vivendo com probidade, voltou-se à pesquisa daquela vida e, à medida que se inteirava das Suas realizações grandiosas, surpreendia-se amando o Desconhecido.
Posteriormente, não obstante continuasse na afanosa busca de notícias, foi informado de que o Mestre ascendera aos Céus, coroado por dourada nuvem, nos altos da Betânia.
Sem que pudesses explicar-se, naquela noite sentiu a alma mergulhar em profunda melancolia, deixando-se arrastar a copioso pranto.
Afastando-se dos aposentos habituais, recolheu-se à meditação entre os caramanchões de adornada pérgula, banhada pela prata do luar. Tinha sede de paz; desejava reverti-se de serenidade.
As horas avançavam lentas e o alienígena, envolto pela noite, sofria por não haver renunciado a tudo para correr desesperado e entregar-se-lhe de coração.
Enquanto meditava, emocionado, Gamal Abdul Gamal viu formar-se, como em sonho encantador, numa tênue claridade, o esboço delgado de um homem de beleza invulgar.
O rosto, tocado de expressiva bondade, apresentava sinais de evidente tristeza, suavizada pela tranqüilidade dos olhos mansos. Antes que pudesse articular qualquer expressão, ouviu doce murmúrio de voz que lhe indagava:
- “Para que me queres, Gamal?”
- “Quem és, Senhor?” – inquiriu o ismaelita
- “Jesus” – respondeu o visitante em luz, – “o amigo a quem amas de longe.”
O filho das estepes ásperas e dos desertos desejou erguer-se para homenagear o amado visitante. No entanto, não pode fazê-lo. Forte torpor tomou-lhe todo o corpo. Com a voz apagada na emoção, balbuciou:
- “Senhor, eu creio que és Aquele de quem falam as tradições de todos os povos... Anseio tanto por Ti... Dize-me o que é mais importante na Terra, a fim de que eu possa encontrar a felicidade mais tarde, no paraíso?”
- “Amar!” – Respondeu o doce Interlocutor. – “Amar de tal forma que se não distinga entre o adversário e o amigo, perdoando tanto que se não faça diferença entre o ofensor e o benfeitor.”
- “era, Senhor, isto possível?” – indagou, esmagado, o candidato à fé.
- “Sim Gamal...” – redargüiu, sereno. – “Não é demasiado. Foi o que eu fiz, a fim de legar a todos, em forma de lição viva, os ensinos que proferi. Faze isso e viverás...”
- “Mas...”
Ia prosseguir, justificar, arguir, o vendedor de cavalos, quando a formação luminosa se diluiu suavemente, perdendo-se entre os raios de prata da noite em festa.
Deu-se conta: estava a sós.
Como se despertasse de abençoado sonho. Gamal se colocou de pé, reflexionou e, no dia seguinte, Jerusalém, surpresa, soube, que o estrangeiro distinto renunciará às regalias da fortuna e retornara à pátria, após distribuir tudo quanto possuía com os infelizes, numa possível crise de loucura.
Anos mais tarde, entre as tendas ismaelitas, nos altiplanos das montanhas, era comum ouvir-se dos contadores de estórias singular narrativa:
- “Houve, entre nós, um cão infiel, que abandonou as origens do povo orgulhoso, filho de Ismael , para ligar-se a miserável judeu crucificado e para cá voltou a fim de profanar as nossas tradições com as Suas lições. Todavia, a sabedoria do Xeique, após ouvir-lhe as loucuras, mandou atá-lo a dois fogosos corcéis que o despedaçaram entre as pedras escalvadas dos largos horizontes. Tão grande fora a sua idiotia, que antes do suplício, indagado qual seria a sua última vontade, respondeu:
- “Amor-vos e perdoa-vos por amor do meu Senhor...”
Pelo Espírito de Amélia Rodrigues – Quando Voltar a Primavera
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