quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O MACEBO RICO

O momento era de profunda significação. Sabia, por estranha intuição, que um dia defrontaria a Realidade, e a encontrava agora.
O apelo pairava vibrando em derredor: - “Vende tudo quanto tens, reparte-o pelos pobres, e terás um tesouro no céu; vem, e segue-me”.
Aquela voz penetrava como um punhal afiado e impregnava qual perfume de nardo.
Havia um magnetismo inconfundível naqueles olhos severos e profundos como duas estrelas engastadas na face pálida do amanhecer.
Tinha sede de paz.
Embora repousasse em leito de madeiras preciosas incrustados de ébano e lápis-lazúli, se banqueteasse em repastos opíparos, cuidasse do corpo com massagens de óleos e ungüentos raros, envolvendo-o em tecidos de linho leve, e suas arcas estivessem abarrotadas de gemas e ouro, sabia-se infeliz, sentia-se infeliz. Faltava-lhe ALGO que não se consegue facilmente.
Hesitava, no entanto.
Sua vivenda era luxuosa, seus pertences valiosos e vazio o seu coração.
Conquanto a juventude cantasse alegrias e festas em convites constantes ao prazer no corpo ágil e vigoroso, acalentava melhores aspirações, se disputava a posse total da paz. Era mais do que tormento essa necessidade. Não que desejasse a tranqüilidade aparatosa dos fariseus ou o repouso entorpecente dos mercadores opulentos, nem a serenidade enganosa dos cambistas abastecidos ou a senectude vitoriosa dos conquistadores em aposentadoria compulsória. Buscava integração harmoniosa, mas não sabia em quê.
Confragia-se e angustiava-se ignorando as nascentes da melancolia renitente que lhe dissipava sonhos e esperanças sob guante de inenarrável amargura.Buscava as competições em Cesaréia, todavia ignorava se essa busca representava uma realização ou fuga.
Agora, pela primeira vez, sentia-se arrebatado.
A meiguice e a ordem daquela vez, enunciada por aquele Homem, ecoavam como cascatas em desalinho nos abismos do espírito.
Interiormente gritava: “Irei contigo, Senhor, mas...”
Hesitava, sim, e a hora não comportava dubiedades.
Uma roseiras de flores rubras, que abraçava os ramos do arvoredo próximo, sacudida pelo vento, desgarrou-se e as pétalas da cor de sangue caíram-lhe aos pés, junto dEle, no alpendre, como sinais...
Donde o conhecia? – indagava, a medo , procurando recordar-se, com indivizível esforço mental.
Todo àquela hora era importante; mais do que isso: vital!
Ao vê-lo, de longe, era como se reencontrasse um amigo, um Celeste amigo.
Quando os seus descansaram nos olhos dEle, sentiu-se desnudado, o coração em descontrole sob violenta pulsação. Emoções inusitadas vibravam no seu ser, como jamais acontecera anteriormente. Desejou arrojar-se ao solo, esmagado por indômita constrição no peito.
Percebeu que o Estranho sorriu, como se o esperasse, como se o amasse, poderia afirmá-lo...
O tempo corria célere galopante as horas fugidias.
Seus lábios se afiguravam selados, e frio impertinente gelava-lhe as mãos.
Lutava por quebrar aquele torpor que o imobilizava.
Retalhos de luar tímido prateavam nuvens soltas no firmamento, bordando de luz oliveiras altivas e loendros em flor.
- Permite-me primeiro – conseguiu articular, vencendo a emoção que o transfigurava – competir em Cesaréia, logo mais, disputando para Israel os triunfos dos jogos...
-Não posso esperar. O Reino dos Céus começa hoje e agora para o teu espírito. Não há tempo a perder.
- Aguardei muito essa ocasião e ela se avizinha, com a chegada do período das competições... Exercitei-me, contratei escravos que me adestraram... aos partos comprei, por uma fortuna, duas parelhas de fogos cavalos... os jogos estão próximos...
- Renuncia, e segue-me!
Quem era Ele, que assim lhe falava? Que poder exercia sobre sua vontade? Por qual sortilégio o dominava?!... Gostaria de fugi ou deixar-se arrastar, estava perturbado; ignorada sofreguidão o aniquilava...
A horizontalidade das aflições humanas contemplava a verticalidade da sublimação divina: o cotidiano deparava com o infinito; o vale fitava o abismo das alturas e se perdia na imensidão.
O homem e o Filho do Homem se defrontavam.
O diálogo parecia impossível, reduzindo-se a um monólogo atormentante para o moço diante daquele Homem.
Vencendo irresistível temor, continuou o príncipe afortunado:
- Não receio dar o que possuo: dinheiro, ouro, gemas, títulos, se possível, pois sei que estes se gastam mui facilmente, mas...
- ...Dá-me a ti próprio e eu te oferecerei a ventura sem limite.
Que alto prêmio! Que pesado tributo! – pensou desanimado.
Era muito jovem e muitos confiavam nele. Possivelmente Israel lucraria com os seus lauréis e triunfos. Príncipe tinha pela frente as avenidas do poder a que se afervorava, PODER que no momento se destituída de qualquer valor.
Os bens, poderia ofertá-los, sim. Porém a fortuna da juventude, os tesouros vibrantes da vaidade atendida e dos caprichos sustentados, as honras de família resguardadas pela tradição, os corifeus agradáveis e bajuladores, oh! seria necessário renunciar-se a isso tudo? – interrogava-se, inquieto.
- Sim! – respondeu-lhe, sem palavras, com os olhos fulgurantes.
Sofria naqueles minutos a soma dos sofrimentos que experimentara a vida toda.
O ar cantava leves murmúrios enquanto as tulipas do campo teciam um manto sutil, rescendendo aromas.
O Rabi, em silencio, aguardava. E ele, em perplexidade, lancinava-se.
O diálogo tornara-se realmente impossível.
Subitamente, o príncipe de qualidade, num átimo de minuto, lembrou-se que amigos o aguardavam na cidade. Compromissos esperavam-no. Deveria debater os detalhes finais para a corrida na grande festa da semana entrante.
Acionado por estranho vigor, que dele se apossou repentinamente, fitou o Messias sereno e triste, balbuciando com voz apagada:
- Não posso. Não posso seguir-Te agora... Perdoa-me, se me amas!
E saiu quase a correr.
Sopravam os ventos frios que chegavam de longe, musicados pelo bulício das estrelas balouçantes.
A terra estuava sob a gramínea orvalhada.
O Mestre sentou-se e se encheu de profundo sofrimento.
Era assim, sempre assim que Ele ficava após a deserção dos convidados ao Banquete da Luz. A expressão de mansuetude e perdão que lhe brilhava nos olhos mergulhava em lágrimas, agasalhada em leves tons de amargura.
Assim O encontraram os discípulos. Interrogado, respondeu:
- “Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas”!
Uma semana depois Cesaréia era a capital do ócio, do prazer.
Situada ao norte da planície de Sarom e a 30 quilômetros ao sul do Monte Carnelo, foi embelezada por Herodes que, no local, mandou erguer grande porto de mar, caracterizado por colossal quebra-mar enriquecendo-a com imponente Templo onde se levantava estátua do imperador.
Esse porto valioso sobre o Mediterrâneo era importante escoadouro de Israel e porta de entrada marítima onde atracavam embarcações de toda parte.
As vilas ajardinadas debruçavam-se sobre as encostas pardacentas da cidade, exibindo estilos arquitetônicos variados.
Pelo seu clima agradável, tornara-se residência oficial dos procuradores romanos, em Israel.
Tamareiras onduladas pelo vento adornavam as ruas e odores exóticos misturavam-se no ar varrido pela maresia.
As anêmonas escarlates ou “lírios do vale” e o narciso branco ou “rosa do Sarom” misturavam-se na planície.
Os festins de Cesáreia pretendiam rivalizar com os de Roma, atraindo aficionados até mesmo da Metrópole longínqua.
Ao som alegre de trompas e fanfarras começavam as festas públicas.
As competições de bigas abrem as corridas ante a aflição de judeus, romanos e gentios que deixaram sobre as mesas dos cambistas pesadas apostas nos seus ases.
Gladiadores em combates simulados, tocadores de pífanos e flautas, alaúdes e címbalos, enchem os intervalos de som e cor.
As quadrigas estão na linha de partida. Os fogosos corcéis, adquiridos aos partos, oriundos da Dalmácia, de Tiro, Sidon e da Arábia, empinam, lustrosos, ajaezados. Ao sinal dispram, sob estrondosa ovação.
Chicotes vibram no ar, mãos firmes nas rédeas, os guias e condutores dão velocidade aos carros frágeis. A celebridade prende a respiração em todos os peitos.
A expectativa fala sem voz na pulsação da tarde ardente e empoeirada.
Numa manobra menos feliz, um carro vira e um corpo tomba na arena, despedaçado pelas patas velozes, em disparada.
O moço rico sente as entranhas abertas, o suor e o sangue em pastas de lama, a respiração estertorada...
Enquanto escravos precípites arrastam-no na pista, foge mentalmente a cena brutal que o esmaga, e entre as névoas que lhe sombreiam os olhos parece vê-LO.
Silenciando os gritos na concha acústica tem a impressão de escutá-LO.
- Renuncia a ti mesmo, vem, e segue-ME.
- Amigo!...
Dois braços o envolvem veludosos e transparentes.
Apesar da face deformada e lavada pelas lágrimas, o suor e o sangue, ele dá a impressão de sorrir.
Pelo Espírito de Amélia Rodrigues – Primícias do Reino

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