Livro Antologia Mediúnica do Natal
Pelo espírito Irmão X
Psicografia de Francisco Cândido
Xavier
Quando Simão Pedro foi arrancado aos
grilhões do cárcere para o derradeiro sacrifício, sentia o coração varado
de angústia, conquanto mostrasse o passo firme. O velho apóstolo, que
transpusera os oitenta de idade, levantava a cabeça branca, destacando-se
na turba à maneira de um pai atormentado por filhos inconscientes.
Irmãos do Evangelho ladeavam-no, tristes,
escondendo o próprio desespero, diante da serenidade com que ele,
encanecido em duras experiências, se acomodava ao martírio.
Mulheres e crianças emaranhavam-se, cortejo
adentro, para beijar-lhe as mãos.
Transeuntes, ainda mesmo adversos ao
Cristianismo nascente, fitavam-no, respeitosos, quais se vissem um
soberano humilhado e pobremente vestido, a caminho de inesperado triunfo...
E até soldados da escolta, recordando vários companheiros que Simão
transfigurara, ao curar-lhe os parentes enfermos, abeiravam-se dele com
veneração e carinho...
Apenas um dos pretorianos, Sertório
Aniceto, destacado elemento na expedição, não poupava o sarcasmo.
Desejando quebrar a atmosfera de reverência
e de êxtase que se fazia, desdobrava impropérios: - Para diante, velho
impudente! Judeu Sujo! Lixo humano, que envergonharia os postes da
arena!...
E mais à frente:
- Não abuse da crendice do povo! Ladrão
imundo, chegou seu fim!...
Pedro, entretanto, contemplava o céu
escaldante da tarde e orava em silêncio... Sentia-se, agora, fatigado e
incapaz! Compreendia que a Boa Nova exigia servidores robustos e rogava ao
Cristo enviasse obreiros novos e valorosos para a vinha do mundo... Mas
não era só isso... No imo do coração, ardia-lhe a saudade do Mestre e
ansiava retomar-lhe a companhia para sempre...
Escalando a colina, via não longe o Campo
de Marte, assinalado pelo monumento de Augusto, as cintilações do Tibre
espreguiçando ao sol, o casario imenso, as termas e os jardins; no
entanto, regressava pela imaginação à Galiléia distante, buscando Jesus em
pensamento...
Revia o lago de Genesaré, em seus dias mais
belos, e as multidões simples e generosas com que o Senhor repartia o pão
e a verdade, o consolo e a esperança...
Por estranhos mecanismos da memória,
respirava, de novo, o perfume das rosas de Betsaida, das romãzeiras de
Dalmanuta, das quintas frutescentes de Magdala e dos pequenos vinhedos de
Cafarnaum...
Apesar do calor reinante, rememorava a
pesca e supunha-se envolvido pelo sopro da brisa, quando a barca
sobrestava as ondas calmas.
Reconstituía, enlevadas, as pregações do
Divino Amigo e parecia-lhe jornadear de retorno à família das crianças e
dos enfermos, das mães sofredoras e dos velhinhos que ele próprio lhe
entregara ao coração...
Atingido o local do suplício, confiou-se
automaticamente aos soldados que o desnudaram, e, como se estivesse
hipnotizado pela ideia do reencontro, sofregamente aguardado quase nada
percebeu dos martelos, rudemente manobrados, que lhe apresavam pés e mãos
ao lenho que se lhe erguera de improviso...
Em derredor, escutava os protestos velados
das centenas de espectadores da lamentável exibição, de mistura com as
preces dos companheiros agoniados...
Detido, porém, na ânsia de repouso, Pedro
não via que o tempo se escoava, sem que lhe desfechassem qualquer golpe...
Aqui e além, grupos em orações e lágrimas
salientavam-se de mãos postas; contudo, a morte tardava... Aniceto, entretanto,
não o perdia de vista, e, reparando que o crepúsculo baixava, atirou-lhe
pontiagudo calhau à cabeça e gritou:
- Morre, bruxo!
O apóstolo observou que o sangue
esguichava, mas, sem qualquer reação, rendeu-se o invencível torpor, qual
se fosse repentinamente anestesiado por brando sono.
Semelhante impressão, contudo, perdurou por
momentos. O ancião, após desalgemar-se do corpo, identificou-se
espiritualmente, livre e eufórico, ao pé dos próprios despojos, e, alheio
à algazarra em torno, contemplou o firmamento, onde os astros se
inflamavam, como se dedos invisíveis acendessem lumes deslumbrantes para
uma festa no céu...
Espantado, observou que um homem descia do
alto, como que materializado pela fulguração das estrelas, e,
decorridos alguns instantes de assombro, viu Jesus a dois passos, a
endereçar-lhe o inolvidável sorriso. - Mestre! – clamou, inclinando-se para
beijar o chão que ele pisava.
O Messias redivivo tomou-o nos braços e
partiu, conchegando-o ao coração, qual se transportasse frágil criança.
Por várias semanas restaurou-se Pedro na
estância de luz que o Cristo lhe reservara Junto dele, visitou
paragens de inexprimível beleza, recolheu lições preciosas, presenciou
espetáculos soberbos de grandeza cósmica e abraçou afeições inesquecíveis...
Quando mais integrado se reconhecia no
Plano Superior, eis que o Celeste Companheiro lhe anuncia nova separação..
Que o discípulo descansasse quanto quisesse, elevando-se às excelsas
regiões... Ele, porém, devia ausentar-se...
- Senhor, aonde vais? – indagou o apóstolo,
penosamente surpreendido. E Jesus, indicando-lhe escuro recanto da
vastidão, em que se adivinhava a residência planetária dos homens,
informou, sereno:
- Pedro, enquanto houver um gemido na
Terra, não me será lícito repousar...
- Então, Senhor, eu também irei contigo...
E, como outrora, demandaram, juntos, os
quadros de ação, em que se lhes evidenciasse o amor sublime...
Atraídos por centenas de vozes,
atravessaram Roma, parando, por fim, em espaçoso cemitério da Via Ápia,
mergulhado na sombra noturna...
A multidão cantava, glorificando o
Senhor...
Não obstante o Natal estivesse na lembrança
de poucos, rememorava-se, ali, diante da imensidão constelada, a melodia
dos mensageiros angélicos.
Simão, fremindo de emotividade, começou a
chorar de alegria. Anelava ser bom, aspirava a ser irmão da Humanidade,
queria auxiliar a construção do Reino de Deus e homenagear a manjedoura de
Belém, ofertando algo de si mesmo, em louvor do Evangelho...
Nesse ínterim, aproximou-se Jesus e
Disse-lhe ao ouvido:
- Pedro, alguém te chama...
O apóstolo voltou-se e, admirado, enxergou
na pequena comunidade um homem triste, carregando nos braços um pequenino
agonizante... Era Aniceto, a rogar-lhe, mentalmente, se lhe compadecesse
do filhinho que a febre devorava. Qual se lhe registrasse a presença,
expunha-lhe os remorsos que amargava e pedia-lhe perdão...
O antigo pescador não hesitou. Depois de
oscular-lhe a fronte suarenta, afagou a criança atribulada, impondo-lhe as
mãos, e, ali mesmo, magneticamente tocado por forças renovadoras e
intangíveis, o menino despertou, lúcido e refeito, enlaçando-se ao pai, à
feição da ave assustada quase torna à segurança do ninho.
Aniceto, no íntimo, compreendeu o socorro e
a bênção que recebia e, renovado, começou a cantar em lágrimas de júbilo:
“Glória a Deus nas alturas, paz na Terra e boa vontade para com os
homens!...”.
Para o rude legionário de César começava
nova vida e para Simão Pedro o serviço continuou...
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