Continuação da leitura do Livro "Boa Nova" de Humberto de Campos psicografada po Chico Xavier
As
águas alegres do Tiberíades se aquietavam de manso, como tocadas por uma força
invisível da Natureza, quando a barca de Simão, conduzindo o Senhor, atingiu
docemente a praia.
O
velho apóstolo, abandonando os remos, deixava transparecer nos traços fisionômicos
as emoções contraditórias de sua alma, enquanto Jesus o observava,
adivinhando-lhe os pensamentos mais recônditos.
–
Que tens tu, Simão? – Perguntou o Mestre; com o seu olhar penetrante e amigo.
Surpreendido
com a palavra do Senhor, o velho Cefas[1] deu, por
um gesto, a perceber os seus receios e as suas apreensões, como se encontrasse
dificuldade em esquecer totalmente a lei antiga, para penetrar os umbrais da ideia
nova, no seu caminho largo de amor, de luz e de esperança.
–
Mestre – respondeu, com timidez – a lei que nos rege manda lapidar a mulher que
perverteu a sua existência.
Conhecendo,
por antecipação, o pensamento do pescador e observando os seus escrúpulos em
lhe atirar uma leve advertência, Jesus lhe respondeu com brandura:
–
Quase sempre, Simão, não é a mulher que se perverte a si mesmos; é o homem quem
lhe destrói a vida.
–
Entretanto – tornou o apóstolo, respeitosamente – os nossos legisladores sempre
ordenaram severidade e rispidez para com as decaídas. Observando os nossos
costumes, Senhor, é que temo por vós, acolhendo tantas meretrizes e mulheres de
má vida, nas pregações do Tiberíades...
–
Nada temas por mim, Simão, porque eu venho de meu Pai e não devo ter outra
vontade, a não ser a de cumprir os seus desígnios sábios e misericordiosos.
Assim
falou o Mestre, cheio de bondade, e, espraiando o olhar compassivo sobre as
águas, levemente encrespadas pelo beijo dos ventos do crepúsculo, continuou,
num misto de energia e doçura:
–
Mas, ouve, Pedro! A lei antiga manda apedrejar a mulher que foi pervertida e
desamparada pelos homens; entretanto, também determina que amemos aos nossos
semelhantes, como a nós mesmos. E o meu destino é o cumprimento da lei, pelo
amor mais sublime sobre a Terra. Poderíamos culpar a fonte, quando um animal
lhe polui as águas? De acordo com a lei, devemos amar a uma e a outro, seja
pela expressão de sua ignorância, seja peia de seus sofrimentos. E o homem é
sempre fraco e a mulher sempre sofredora!...
O
velho pescador recebia a exortação com um brilho novo nos olhos, como se fora
tocado nas fibras mais íntimas do seu espírito.
–
Mestre – retrucou, altamente surpreendido – vossa palavra é a da revelação
divina. Quereis dizer, então, que a mulher é superior ao homem, na sua missão
terrestre?
–
Uma e outro são iguais perante Deus – esclareceu o Cristo, amorosamente – e as
tarefas de ambos se equilibram no caminho da vida, completando-se
perfeitamente, para que haja, em todas as ocasiões, o mais santo respeito
mútuo. Precisamos considerar, todavia, que a mulher recebeu a sagrada missão da
vida. Tendo avançado mais do que o seu companheiro na estrada do sentimento,
está, por isso, mais perto de Deus que, muitas vezes, lhe toma o coração por
instrumento de suas mensagens, cheias de sabedoria e de misericórdia. Em todas
as realizações humanas, há sempre o fruto da ternura feminina, levantando obras
imperecíveis na edificação dos espíritos. Na história dos homens, ficam somente
os nomes dos políticos, dos filósofos e dos generais; mas todos eles são filhos
da grande heroína que passa, no silêncio, desconhecida de todos, muita vez
dilacerada nos seus sentimentos mais íntimos ou exterminada nos sacrifícios
mais pungentes. Mas também Deus, Simão, passa ignorado em todas as realizações
do progresso humano e nós sabemos que o ruído é próprio dos homens, enquanto
que o silêncio é de Deus, síntese de toda a verdade e de todo o amor.
“Por
isso, as mulheres mais desventuradas ainda possuem. no coração o gérmen divino,
para a redenção da humanidade inteira. Seu sentimento de ternura e humildade
será, em todos os tempos, o grande roteiro para a iluminação do mundo, porque,
sem o tesouro do sentimento, todas as obras da razão humana podem parecer como
um castelo de falsos esplendores.”
Simão
Pedro ouvia o Mestre, tomado de profundo enlevo e santificado fervor
admirativo.
–
Tendes razão, Senhor! – Murmurou, entre humilde e satisfeito.
–
Sim, Pedro, temos razão. – Replicou Jesus, com bondade. – E será ainda à mulher
que buscaremos confiar a missão mais sublime na construção evangélica, dentro
dos corações, no supremo esforço de iluminar o mundo.
O
apóstolo do Tiberíades ouvira as derradeiras palavras do Divino Mestre, tomado
de surpresa.
Conservou-se,
no entanto, em silêncio, ante o sorriso doce do Messias.
Muito
distante, o último beijo do Sol punha um reflexo dourado no leque móvel das
águas, que as correntes claras do Jordão enriqueciam. Simão Pedro, fatigado do
labor diário, preparou-se para descansar, com sua alma clareada pelas novas
revelações da palavra do Senhor, as quais, cheias de luz e de esperança
divinas, dissipavam as obscuridades da lei de Moisés.
***
Dois
dias eram passados sobre o doloroso drama do Calvário, em cuja cruz de
inominável martírio se sacrificara o Mestre, pelo bem de todos os homens.
Penosa situação de dúvida reinava dentro da pequena comunidade dos discípulos.
Quase todos haviam vacilado na hora extrema. O raciocínio frágil do homem
lutava por compreender a finalidade daquele sacrifício. Não era Jesus o
poderoso Filho de Deus que consolara os tristes, ressuscitara mortos, sarara
enfermos de doenças incuráveis? Por que não conjurara a traição de Judas com as
suas forças sobrenaturais? Por que se humilhara assim, sangrando de dor, nas
ruas de Jerusalém, submetendo-se ao ridículo e à zombaria? Então, o emissário
do Pai Celestial deveria ser crucificado entre dois ladrões!
Enquanto
essas questões eram examinadas, de boca em boca, a lembrança do Messias ficava
relegada a plano inferior, olvidada a sua exemplificação e a grandeza dos seus ensinamentos.
O barco da fé não sobrara inteiramente, porque ali estavam as lágrimas do
coração materno, trespassado de amarras.
O
Messias redivivo, porém, observava a incompreensão de seus discípulos, como o
pastor que contempla o seu rebanho desarvorado. Desejava fazer ouvida a sua
palavra divina, dentro dos corações atormentados; mas só a fé ardente e o
ardente amor conseguem vencer os abismos de sombra entre a Terra e o Céu. E
todos os companheiros se deixavam abater pelas ideias negativas.
Foi
então, quando, na manhã do terceiro dia, a ex-pecadora de Magdala se acercou do
sepulcro com perfumes e flores. Queria, ainda uma vez, aromatizar aquelas mãos
inertes e frias; queria, uma vez mais, contemplar o Mestre adorado, para
cobri-lo com o pranto do seu amor purificado e ardoroso. No seu coração estava
aquela fé radiosa e pura que o Senhor lhe ensinara e, sobretudo, aquela,
dedicação divina, com que pudera renunciar a todas as paixões que a seduziam no
mundo. Maria Madalena ia ao túmulo com amor e só o amor pode realizar os
milagres supremos.
Estupefata,
por não encontrar o corpo bem-amado, já se retirava entristecida, para dar
ciência do que verificara aos companheiros, quando uma voz carinhosa e meiga
exclamou brandamente aos seus ouvidos:
–
Maria!...
Ela
se supôs admoestada pelo jardineiro; mas em breves instantes reconhecia a voz
inesquecível do Mestre e lhe contemplava o inolvidável sorriso. Quis
atirar-se-lhe aos pés, beijar-lhe as mãos num suave transporte de afetos, como
fazia nas pregações do Tiberíades; porém, com um gesto de soberana ternura,
Jesus a afastou, esclarecendo:
–
Não me toques, pois ainda não fui a meu Pai que está nos céus!...
Instintivamente,
Madalena se ajoelhou e recebeu o olhar do Mestre, num transbordamento de
lágrimas de inexcedível ventura. Era a promessa de Jesus que se cumpria. A
realidade da ressurreição era a essência divina, que manteria eternidade ao
Cristianismo.
A
mensagem da alegria ressoou, então, na, comunidade inteira. Jesus ressuscitara!
O Evangelho era a verdade imutável. Em todos os corações pairava uma divina
embriaguez de luz e júbilos celestiais. Levantava-se a fé, renovava-se o amor,
morrera a dúvida e reerguera-se o ânimo em todos os espíritos. Na amplitude da
vibração amorosa, outros olhos puderam vê-lo e outros ouvidos lhe escutaram a
voz dulçurosa e persuasiva, ecoou nos dias gloriosos de Jerusalém ou de
Cafarnaum.
Desde
essa hora, a família cristã se movimentou no mundo, para nunca mais esquecer o
exemplo do Messias.
A
luz da ressurreição, através da fé ardente e do ardente amor de Maria Madalena,
havia banhado de claridade imensa a estrada cristã, para todos os séculos
terrestres.
***
É
por isso que todos os historiadores das origens do Cristianismo param a pena,
assombrados ante a fé profunda dos primeiros discípulos que se dispersaram pelo
deserto das grandes cidades, para pregação da Boa-Nova e, observando a
confiança serena de todos os mártires que se têm sacrificado na esteira
infinita do Tempo pela ideia de Jesus, perguntam espantados, como Ernesto Renas,
numa de suas obras:
–
Onde está o sábio da Terra que já deu ao mundo tanta alegria, como a carinhosa
Maria de Magdala?
[1] Em Aramaico há duas palavras para designar
materiais rochosos: 1º Evna = Pedra e 2º
Kepha (ou cefas, transliterado para o
grego) = Rocha. A Bíblia nos diz que Jesus deu um nome novo a
um pescador que se chamava Simão e este nome foi “KEPHA” (Aramaico) e
transliterado como “cefas”, que no grego
ficou “Petrus”, como podemos ver em João 1, 42: “Levou-o
a Jesus, e Jesus, fixando nele o olhar, disse: Tu és Simão, filho de Jonas,
serás chamado Cefas.”Em aramaico não temos gênero, mas em grego sim, por isso a
palavra Petra que é o equivalente a KEPHA (cefas) foi masculinizada para dar
nome a um homem, Petrus, mas o significado permaneceu o mesmo (Rocha ou pedra
grande).