Continuação da leitura do Livro "Boa Nova" de Humberto de Campos psicografada po Chico Xavier.
Maria de Magdala ouvira as pregações do Evangelho do Reino, não longe da Vila principesca onde vivia à conta de prazeres, em companhia de patrícios romanos, e tornara-se de admiração profunda pelo Messias.
Que novo amor era aquele apregoado aos pescadores singelos por lábios tão divinos? Até ali, caminhara ela sobre as rosas rubras do desejo, embriagando-se com o vinho de condenáveis alegrias. Contudo, seu coração estava sequioso e em desalento. Era jovem e formosa, emancipara-se dos preconceitos férreos de sua raça; sua beleza lhe escravizara aos caprichos de mulher os mais ardentes admiradores; mas seu espírito tinha fome de amor. O profeta nazareno havia plantado em sua alma novos pensamentos. Depois que lhe ouvira a palavra, observou que as facilidades da vida lhe traziam agora um tédio mortal ao espírito sensível. As músicas voluptuosas não lhe encontravam eco no íntimo, os enfeites romanos de sua habitação se tornaram áridos e tristes. Maria chorou longamente, embora não compreendesse ainda o que pleiteava o profeta desconhecido; entretanto, seu convite amoroso parecia ressoar-lhe nas fibras mais sensíveis de mulher. Jesus chamava os homens para uma vida nova.
Decorrida uma noite de grandes meditações e antes do famoso banquete em Naim, onde ela ungiria publicamente os pés de Jesus com os bálsamos perfumados de seu afeto, notou-se que uma barca tranqüila conduzia a pecadora a Cafarnaum. Dispusera-se a procurar o Messias, após muitas hesitações. Como a receberia o Senhor, na residência de Simão? Seus conterrâneos nunca lhe haviam perdoado o abandono do lar e a vida de aventuras. Para todos, era ela a mulher perdida, que teria de encontrar a lapidação na praça publica. Sua consciência, porém, lhe pedia que fosse. Jesus tratava a multidão com especial carinho. Jamais lhe observara qualquer expressão de desprezo para com as numerosas mulheres de vida equívoca que o cercavam. Além disso, sentia-se seduzida pela sua generosidade. Se possível, desejaria trabalhar na execução de suas idéias puras e redentoras. Propunha-se a amar, como Jesus amava, sentir com os seus sentimentos sublimes. Se necessário, saberia renunciar a tudo. Que lhe valiam as jóias, as flores raras, os banquetes suntuosos, se, ao fim de tudo isso, conservava a sua sede de amor?!...
Envolvida por esses pensamentos profundos, Maria de Magdala perpetrou o umbral da humilde residência de Simão Pedro, onde Jesus parecia esperá-la, tal a bondade com que a recebeu num grande sorriso. A recém-chegada sentou-se com indefinível emoção a estrangular-lhe o peito.
– Senhor, ouvi a vossa palavra consoladora e venho ao vosso encontro!... Tendes a clarividência do céu e podeis adivinhar como tenho vivido! Sou uma filha do pecado. Todos me condenam. Entretanto, Mestre, observai como tenho sede do verdadeiro amor!... Minha existência, como todos os prazeres, tem sido estéril e amargurada...
As primeiras lágrimas lhe borbulharam dos olhos, enquanto Jesus a contemplava, com bondade infinita. Ela, porém, continuou:
– Ouvi o vosso amoroso convite ao Evangelho! Desejava ser das vossas ovelhas; mas será que Deus me aceitaria?
O Profeta nazareno fitou-a, enternecido, sondando as profundezas de seu pensamento e respondeu bondoso:
– Maria, levanta os olhos para, o céu e regozija-te no caminho porque escutaste a Boa-Nova do Reino e Deus te abençoa as alegrias. Acaso poderias pensar que alguém no mundo estivesse condenado ao pecado eterno. Onde, então, o amor de Nosso Pai? Nunca viste a primavera dar flores sobre uma casa em ruínas? As ruínas são as criaturas humanas; porém, as flores são a esperança em Deus. Sobre todas as falências e desventuras próprias do homem as bênçãos paternais de Deus descem e chamam. Sentes hoje esse novo Sol a iluminar-te o destino! Caminha agora, sob a sua luz, porque o amor cobre a multidão dos pecados.
A pecadora de Magdala escutava o Mestre, bebendo-lhe as palavras. Homem algum havia falado assim a sua alma incompreendida, os mais levianos lhe pervertiam as boas inclinações, os aparentemente virtuosos a desprezavam sem piedade. Engolfada em pensamentos confortadores e ouvindo as referências de Jesus ao amor, Maria acentuou, levemente:
-No entanto, Senhor, tenho amado e tenho sede de amor!...
– Sim – redarguiu Jesus – tua sede é real.
O mundo viciou todas as fontes de redenção e é imprescindível compreenda que em suas sendas a virtude tem de marchar por uma porta muito estreita. Geralmente, um homem deseja ser bom como os outros, ou honesto como os demais, olvidando que o caminho onde todos passam é de fácil acesso e de marcha sem edificações. A virtude no mundo foi transformada na porta larga da conveniência própria. Há os que amam aos que lhe pertencem ao círculo pessoal, os que são sinceros com os seus amigos, os que defendem seus familiares, os que adoram os deuses do favor. O que verdadeiramente ama, porém, conhece a renúncia suprema a todos os bens do mundo e vive feliz, na sua senda de trabalhos para o difícil acesso às luzes da redenção. O amor sincero não exige satisfações passageiras, que se extinguem no mundo com a primeira ilusão; trabalha sempre, sem amargura e sem ambição, com os júbilos do sacrifício. Só o amor que renuncia sabe caminhar para, a vida suprema!...
Maria o escutava, embevecida. Ansiosa por compreender inteiramente aqueles ensinos novos, interrogou atenciosamente:
– Só o ardor pelo sacrifício poderá saciar a sede do coração?
Jesus teve um gesto afirmativo e continuou:
Somente o sacrifício contém o divino mistério da vida. Viver bem é saber imolar-se. Acreditas que o mundo pudesse manter o equilíbrio próprio tão só com os caprichos antagônicos e por vezes criminosos dos que se elevam à galeria dos triunfadores? Toda luz humana vem do coração experiente e brando dos que foram sacrificados.
Um guerreiro coberto de louros ergue os seus gritos de vitória sobre os cadáveres que juncam o chão; mas, apenas os que tombaram fazem bastante silêncio, para que se ouça no mundo a mensagem de Deus. O primeiro pode fazer a experiência para um dia ; os segundos constroem à estrada definitiva na eternidade.
Na tua condição de mulher, já pensaste no que seria o mundo, sem as mães exterminadas no silêncio e no sacrifício? Não são elas as cultivadoras do jardim da vida, onde os bonecos travam a, batalha ?!... Muitas vezes, o campo enflorescido se cobre de lama e sangue; mas na sua tarefa silenciosa, os corações maternais não desesperam e reedificam o jardim da vida, imitando a Providência Divina que espalha sobre um cemitério os lírios perfumados de seu amor!...
Maria de Magdala, ouvindo aquelas advertências, começou a chorar, a sentir no íntimo o deserto da mulher sem filhos. Por fim, exclamou:
– Desgraçada de mim, Senhor, que não poderei ser mãe!...
Então, atraindo-a, brandamente, a si, o Mestre acrescentou:
– E qual das mães será maior aos olhos de Deus'? A que se devotou somente aos filhos de sua carne, ou a que se consagrou, pelo espírito, aos filhos das outras mães?
Aquela interrogação pareceu despertá-la para meditações mais profundas. Maria sentiu-se amparada por uma energia interior diferente, que até então desconhecera. A palavra de Searas lhe honrava o espírito; convidava-a a ser mãe de seus irmãos em humanidade, aquinhoando-os com os bens supremos das mais elevadas virtudes da vida. Experimentando radiosa felicidade em seu mundo íntimo; contemplou o Messias com os olhos nevoados de lágrimas e, no êxtase de sua imensa alegria, murmurou comovidamente:
– Senhor, doravante renunciarei a todos os prazeres transitórios do mundo, para adquirir o amor celestial que me ensinastes!... Acolherei como filhas as minhas irmãs no sofrimento, procurarei os infortunados para aliviar-lhes as feridas do coração, estarei com os aleijados e leprosos...
Nesse instante, Simão Pedro passou pelo aposento, demandando o interior, e a observou com certa estranheza. A convertida de Magdala lhe sentiu o olhar glacial, quase denotando desprezo, e, já receosa de um dia perder a convivência do Mestre, perguntou com interesse:
– Senhor, quando partirdes deste mundo, como ficaremos?
Jesus compreendeu o motivo e o alcance de sua palavra e esclareceu:
– Certamente que partirei, mas estaremos eternamente reunidos em espírito. Quanto ao futuro, com o infinito de suas perspectivas, é necessário que cada um tome sua cruz, em busca da porta estreita da redenção, colocando acima de tudo a fidelidade a Deus e, em segundo lugar, a perfeita confiança em si mesmo.
Observando que Maria, ainda opressa pelo olhar estranho de Simão Pedro, se preparava a regressar, o Mestre lhe sorriu com bondade e disse:
– Vai, Maria!... Sacrifica-te e ama sempre. Longo é o caminho, difícil à jornada, estreita a porta; mas a fé remove os obstáculos... Nada temas, é preciso crer somente!
A mensagem da ressurreição espalhara uma alegria infinita.
Após algum tempo, quando os apóstolos e seguidores do Messias procuravam reviver o passado junto ao Tiberíades, os discípulos diretos do Senhor abandonaram a região, a serviço da Boa-Nova. Ao disporem-se os dois últimos companheiros a partir em definitiva para Jerusalém, Maria de Magdala, temendo a solidão da saudade, rogou fervorosamente lhe permitísseis acompanhá-los à cidade dos profetas ; ambos, no entanto, se negaram a anuir aos seus desejos. Temiam-lhe o pretérito de pecadora, não confiavam em seu coração de mulher. Maria compreendeu, mas lembrou-se do Mestre e resignou-se.
Humilde e sozinha resistiu a todas as propostas condenáveis que a solicitavam para uma nova queda de sentimentos. Sem recursos para viver, trabalhou pela própria manutenção, em Magdala e Dalmanuta. Foi forte nas horas mais ásperas, alegre nos sofrimentos mais escabrosos, fiel a Deus nos instantes escuros e pungentes. De vez em quando, ia às sinagogas, desejosa de cultivar a lição de Jesus; mas as aldeias da Galiléia estavam novamente subjugadas pela intransigência do judaísmo. Ela compreendeu que palmilhava agora o caminho estreito, onde ia só, com a sua confiança em Jesus. Por vezes, chorava de saudade, quando passeava no silêncio da praia, recordando a presença do Messias. As aves do lago, ao crepúsculo, vinham pousar, como outrora, nas alcaparreiras mais próximas, o horizonte oferecia, como sempre, o seu banquete de luz. Ela contemplava as ondas mansas e lhes confiava suas meditações.
Certo dia, um grupo de leprosos veio a Dalmanuta; procediam da Iduméia aqueles infelizes, cansados e triste, em supremo abandono. Perguntavam por Jesus Nazareno, mas todas as portas se lhes fechavam. Maria foi ter com eles e, sentindo-se isolada, com amplo direito de empregar a sua liberdade, reuniu-os sob as árvores da praia e lhes transmitiu as palavras de Jesus, enchendo-lhes os corações das claridades do Evangelho. As autoridades locais, entretanto, ordenaram a expulsão imediata dos enfermos. A grande convertida percebeu tamanha alegria no semblante dos infortunados, em face de suas fraternas revelações, com respeito às promessas do Senhor, que se pôs em marcha para Jerusalém, na companhia deles. Todo o grupo passou a noite ao relento, mas sentia-se que os júbilos do Reino de Deus agora os dominavam. Todos se interessavam pelas descrições de Maria, devoravam-lhe as exortações, contagiados de sua alegria e de sua fé. Chegados à cidade, foram conduzidos ao vale dos leprosos, que ficava distante, onde Madalena perpetrou com espontaneidade de coração. Seu espírito recordava as lições do Messias e uma coragem indefinível se assenhoreara de sua alma.
Dali em diante, todas as tardes, a mensageira do Evangelho reunia a turba de seus novos amigos e lhes dizia o ensinamento de Jesus. Rostos ulcerados enchiam-se de alegria, olhos sombrios e tristes tocavam-se de nova luz. Maria lhes explicava que Jesus havia exemplificado o bem até a morte, ensinando que todos os seus discípulos deviam ter bom ânimo para vencer o mundo. Os agonizantes arrastavam-se até junto dela e lhe beijavam a túnica singela. A filha de Magdala, lembrando o amor do Mestre, tomava-os em seus braços fraternos e carinhosos.
Em breve tempo, sua epiderme apresentava, igualmente, manchas violáceas e tristes. Ela compreendeu a sua nova situação e recordou a recomendação do Messias de que cimente sabiam viver os que sabiam imolar-se. E experimentou grande gozo, por haver levado aos seus companheiros de dor uma migalha de esperança. Desde a sua chegada, em todo o vale se falava daquele Reino de Deus que a criatura devia edificar no próprio coração. Os moribundos esperavam a morte com um sorriso ditoso nos lábios, os que a lepra deformara ou abatera guardavam bom ânimo, nas fibras mais sensíveis.
Sentindo-se ao termo de sua tarefa meritória, Maria de Magdala desejou rever antigas afeições de seu circulo pessoal, que se encontravam em Éfeso. Lá estavam João e Maria, além de outros companheiros dos júbilos cristãos. Adivinhava que as suas últimas dores terrestres vinham muito próximas; todavia, deliberou pôr em prática o seu humilde desejo.
Nas despedidas, seus companheiros de infortúnio material vinham suplicar-lhe os derradeiros conselhos e recordações. Envolvendo-os no seu carinho, a emissária do Evangelho lhes dizia apenas:
– Jesus deseja intensamente que nos amemos uns aos outros e que participemos de suas divinas esperanças, na mais extrema lealdade a Deus!...
Dentre aqueles doentes, os que ainda se equilibravam pelos caminhos lhe traziam o fruto das esmolas escassas, as crianças abandonadas vinham beijar-lhe as mãos.
Na fortaleza de sua fé, a ex-pecadora abandonou o vale, afastando-se de suas choupanas misérrimas, através das estradas ásperas. A peregrinação foi-lhe difícil e angustiosa. Para satisfazer aos seus intentos recorreu à caridade, sofreu penosas humilhações, submeteu-se ao sacrifício. Observando as feridas pustulentas, que substituíam a sua antiga beleza, alçava-se em reconhecer que seu espírito não tinha motivos para lamentações. Jesus a esperava e sua alma era fiel.
Realizada a sua aspirarão, por entre dificuldades infinitas, Maria achou-se, um dia, às portas da cidade; mas invencível abatimento lhe dominava os centros de força física. No justo momento de suas efusões afetuosas, quando o casario de defeso se lhe desdobrava à vista, seu corpo alquebrado negou-se a caminhar. Modesta família de cristãos do subúrbio recolheu-a a uma tenda humilde, caridosamente. Madalena pôde ainda rever amizades bem caras, consoante seus desejos. Entretanto, por largos dias de padecimentos, debateu-se entre a vida e a morte.
Uma noite, atingiram o auge as profundas dores que sentia. Sua alma estava iluminada por brandas reminiscências e, não obstante seus olhos se acharem selados pelas pálpebras intumescidas, via com os olhos da imaginação o lago querido, os companheiros de fé, o Mestre bem-amado. Seu espírito parecia transpor as fronteiras da eternidade radiosa. De minuto a minuto, ouvia-se-lhe um gemido surdo, enquanto os irmãos de crença lho rodeavam o leito de dor, com as preces sinceras de seus corações amigos e desvelados.
Em dado instante, observou-se que seu peito não mais arfava. Maria, no entanto, experimentava consoladora sensação de alívio. Sentia-se sob as árvores de Cafarnaum e esperava o Messias. As aves cantavam nos ramos próximos e as ondas sussurrantes vinham beijar-lhe os pés. Foi quando viu Jesus aproximar-se, mais belo do que nunca. Seu olhar tinha o reflexo do céu e no semblante trazia um júbilo indefinível. O Mestre estendeu-lhe as mãos e ela se prosternou, exclamando, como antigamente:
– Senhor!...
Jesus recolheu-a, brandamente, nos braços e murmurou:
– Maria, já passaste a porta estreita!... Amaste muito! Vem! Eu te espero aqui!
Que novo amor era aquele apregoado aos pescadores singelos por lábios tão divinos? Até ali, caminhara ela sobre as rosas rubras do desejo, embriagando-se com o vinho de condenáveis alegrias. Contudo, seu coração estava sequioso e em desalento. Era jovem e formosa, emancipara-se dos preconceitos férreos de sua raça; sua beleza lhe escravizara aos caprichos de mulher os mais ardentes admiradores; mas seu espírito tinha fome de amor. O profeta nazareno havia plantado em sua alma novos pensamentos. Depois que lhe ouvira a palavra, observou que as facilidades da vida lhe traziam agora um tédio mortal ao espírito sensível. As músicas voluptuosas não lhe encontravam eco no íntimo, os enfeites romanos de sua habitação se tornaram áridos e tristes. Maria chorou longamente, embora não compreendesse ainda o que pleiteava o profeta desconhecido; entretanto, seu convite amoroso parecia ressoar-lhe nas fibras mais sensíveis de mulher. Jesus chamava os homens para uma vida nova.
Decorrida uma noite de grandes meditações e antes do famoso banquete em Naim, onde ela ungiria publicamente os pés de Jesus com os bálsamos perfumados de seu afeto, notou-se que uma barca tranqüila conduzia a pecadora a Cafarnaum. Dispusera-se a procurar o Messias, após muitas hesitações. Como a receberia o Senhor, na residência de Simão? Seus conterrâneos nunca lhe haviam perdoado o abandono do lar e a vida de aventuras. Para todos, era ela a mulher perdida, que teria de encontrar a lapidação na praça publica. Sua consciência, porém, lhe pedia que fosse. Jesus tratava a multidão com especial carinho. Jamais lhe observara qualquer expressão de desprezo para com as numerosas mulheres de vida equívoca que o cercavam. Além disso, sentia-se seduzida pela sua generosidade. Se possível, desejaria trabalhar na execução de suas idéias puras e redentoras. Propunha-se a amar, como Jesus amava, sentir com os seus sentimentos sublimes. Se necessário, saberia renunciar a tudo. Que lhe valiam as jóias, as flores raras, os banquetes suntuosos, se, ao fim de tudo isso, conservava a sua sede de amor?!...
Envolvida por esses pensamentos profundos, Maria de Magdala perpetrou o umbral da humilde residência de Simão Pedro, onde Jesus parecia esperá-la, tal a bondade com que a recebeu num grande sorriso. A recém-chegada sentou-se com indefinível emoção a estrangular-lhe o peito.
***
Vencendo, contudo, as suas mais fortes impressões, assim falou, em voz súplice, feitas as primeiras saudações: – Senhor, ouvi a vossa palavra consoladora e venho ao vosso encontro!... Tendes a clarividência do céu e podeis adivinhar como tenho vivido! Sou uma filha do pecado. Todos me condenam. Entretanto, Mestre, observai como tenho sede do verdadeiro amor!... Minha existência, como todos os prazeres, tem sido estéril e amargurada...
As primeiras lágrimas lhe borbulharam dos olhos, enquanto Jesus a contemplava, com bondade infinita. Ela, porém, continuou:
– Ouvi o vosso amoroso convite ao Evangelho! Desejava ser das vossas ovelhas; mas será que Deus me aceitaria?
O Profeta nazareno fitou-a, enternecido, sondando as profundezas de seu pensamento e respondeu bondoso:
– Maria, levanta os olhos para, o céu e regozija-te no caminho porque escutaste a Boa-Nova do Reino e Deus te abençoa as alegrias. Acaso poderias pensar que alguém no mundo estivesse condenado ao pecado eterno. Onde, então, o amor de Nosso Pai? Nunca viste a primavera dar flores sobre uma casa em ruínas? As ruínas são as criaturas humanas; porém, as flores são a esperança em Deus. Sobre todas as falências e desventuras próprias do homem as bênçãos paternais de Deus descem e chamam. Sentes hoje esse novo Sol a iluminar-te o destino! Caminha agora, sob a sua luz, porque o amor cobre a multidão dos pecados.
A pecadora de Magdala escutava o Mestre, bebendo-lhe as palavras. Homem algum havia falado assim a sua alma incompreendida, os mais levianos lhe pervertiam as boas inclinações, os aparentemente virtuosos a desprezavam sem piedade. Engolfada em pensamentos confortadores e ouvindo as referências de Jesus ao amor, Maria acentuou, levemente:
-No entanto, Senhor, tenho amado e tenho sede de amor!...
– Sim – redarguiu Jesus – tua sede é real.
O mundo viciou todas as fontes de redenção e é imprescindível compreenda que em suas sendas a virtude tem de marchar por uma porta muito estreita. Geralmente, um homem deseja ser bom como os outros, ou honesto como os demais, olvidando que o caminho onde todos passam é de fácil acesso e de marcha sem edificações. A virtude no mundo foi transformada na porta larga da conveniência própria. Há os que amam aos que lhe pertencem ao círculo pessoal, os que são sinceros com os seus amigos, os que defendem seus familiares, os que adoram os deuses do favor. O que verdadeiramente ama, porém, conhece a renúncia suprema a todos os bens do mundo e vive feliz, na sua senda de trabalhos para o difícil acesso às luzes da redenção. O amor sincero não exige satisfações passageiras, que se extinguem no mundo com a primeira ilusão; trabalha sempre, sem amargura e sem ambição, com os júbilos do sacrifício. Só o amor que renuncia sabe caminhar para, a vida suprema!...
Maria o escutava, embevecida. Ansiosa por compreender inteiramente aqueles ensinos novos, interrogou atenciosamente:
– Só o ardor pelo sacrifício poderá saciar a sede do coração?
Jesus teve um gesto afirmativo e continuou:
Somente o sacrifício contém o divino mistério da vida. Viver bem é saber imolar-se. Acreditas que o mundo pudesse manter o equilíbrio próprio tão só com os caprichos antagônicos e por vezes criminosos dos que se elevam à galeria dos triunfadores? Toda luz humana vem do coração experiente e brando dos que foram sacrificados.
Um guerreiro coberto de louros ergue os seus gritos de vitória sobre os cadáveres que juncam o chão; mas, apenas os que tombaram fazem bastante silêncio, para que se ouça no mundo a mensagem de Deus. O primeiro pode fazer a experiência para um dia ; os segundos constroem à estrada definitiva na eternidade.
Na tua condição de mulher, já pensaste no que seria o mundo, sem as mães exterminadas no silêncio e no sacrifício? Não são elas as cultivadoras do jardim da vida, onde os bonecos travam a, batalha ?!... Muitas vezes, o campo enflorescido se cobre de lama e sangue; mas na sua tarefa silenciosa, os corações maternais não desesperam e reedificam o jardim da vida, imitando a Providência Divina que espalha sobre um cemitério os lírios perfumados de seu amor!...
Maria de Magdala, ouvindo aquelas advertências, começou a chorar, a sentir no íntimo o deserto da mulher sem filhos. Por fim, exclamou:
– Desgraçada de mim, Senhor, que não poderei ser mãe!...
Então, atraindo-a, brandamente, a si, o Mestre acrescentou:
– E qual das mães será maior aos olhos de Deus'? A que se devotou somente aos filhos de sua carne, ou a que se consagrou, pelo espírito, aos filhos das outras mães?
Aquela interrogação pareceu despertá-la para meditações mais profundas. Maria sentiu-se amparada por uma energia interior diferente, que até então desconhecera. A palavra de Searas lhe honrava o espírito; convidava-a a ser mãe de seus irmãos em humanidade, aquinhoando-os com os bens supremos das mais elevadas virtudes da vida. Experimentando radiosa felicidade em seu mundo íntimo; contemplou o Messias com os olhos nevoados de lágrimas e, no êxtase de sua imensa alegria, murmurou comovidamente:
– Senhor, doravante renunciarei a todos os prazeres transitórios do mundo, para adquirir o amor celestial que me ensinastes!... Acolherei como filhas as minhas irmãs no sofrimento, procurarei os infortunados para aliviar-lhes as feridas do coração, estarei com os aleijados e leprosos...
Nesse instante, Simão Pedro passou pelo aposento, demandando o interior, e a observou com certa estranheza. A convertida de Magdala lhe sentiu o olhar glacial, quase denotando desprezo, e, já receosa de um dia perder a convivência do Mestre, perguntou com interesse:
– Senhor, quando partirdes deste mundo, como ficaremos?
Jesus compreendeu o motivo e o alcance de sua palavra e esclareceu:
– Certamente que partirei, mas estaremos eternamente reunidos em espírito. Quanto ao futuro, com o infinito de suas perspectivas, é necessário que cada um tome sua cruz, em busca da porta estreita da redenção, colocando acima de tudo a fidelidade a Deus e, em segundo lugar, a perfeita confiança em si mesmo.
Observando que Maria, ainda opressa pelo olhar estranho de Simão Pedro, se preparava a regressar, o Mestre lhe sorriu com bondade e disse:
– Vai, Maria!... Sacrifica-te e ama sempre. Longo é o caminho, difícil à jornada, estreita a porta; mas a fé remove os obstáculos... Nada temas, é preciso crer somente!
***
Mais tarde, depois de sua gloriosa visão do Cristo ressuscitado, Maria de Magdala voltou de Jerusalém para a Galiléia, seguindo os passos dos companheiros queridos. A mensagem da ressurreição espalhara uma alegria infinita.
Após algum tempo, quando os apóstolos e seguidores do Messias procuravam reviver o passado junto ao Tiberíades, os discípulos diretos do Senhor abandonaram a região, a serviço da Boa-Nova. Ao disporem-se os dois últimos companheiros a partir em definitiva para Jerusalém, Maria de Magdala, temendo a solidão da saudade, rogou fervorosamente lhe permitísseis acompanhá-los à cidade dos profetas ; ambos, no entanto, se negaram a anuir aos seus desejos. Temiam-lhe o pretérito de pecadora, não confiavam em seu coração de mulher. Maria compreendeu, mas lembrou-se do Mestre e resignou-se.
Humilde e sozinha resistiu a todas as propostas condenáveis que a solicitavam para uma nova queda de sentimentos. Sem recursos para viver, trabalhou pela própria manutenção, em Magdala e Dalmanuta. Foi forte nas horas mais ásperas, alegre nos sofrimentos mais escabrosos, fiel a Deus nos instantes escuros e pungentes. De vez em quando, ia às sinagogas, desejosa de cultivar a lição de Jesus; mas as aldeias da Galiléia estavam novamente subjugadas pela intransigência do judaísmo. Ela compreendeu que palmilhava agora o caminho estreito, onde ia só, com a sua confiança em Jesus. Por vezes, chorava de saudade, quando passeava no silêncio da praia, recordando a presença do Messias. As aves do lago, ao crepúsculo, vinham pousar, como outrora, nas alcaparreiras mais próximas, o horizonte oferecia, como sempre, o seu banquete de luz. Ela contemplava as ondas mansas e lhes confiava suas meditações.
Certo dia, um grupo de leprosos veio a Dalmanuta; procediam da Iduméia aqueles infelizes, cansados e triste, em supremo abandono. Perguntavam por Jesus Nazareno, mas todas as portas se lhes fechavam. Maria foi ter com eles e, sentindo-se isolada, com amplo direito de empregar a sua liberdade, reuniu-os sob as árvores da praia e lhes transmitiu as palavras de Jesus, enchendo-lhes os corações das claridades do Evangelho. As autoridades locais, entretanto, ordenaram a expulsão imediata dos enfermos. A grande convertida percebeu tamanha alegria no semblante dos infortunados, em face de suas fraternas revelações, com respeito às promessas do Senhor, que se pôs em marcha para Jerusalém, na companhia deles. Todo o grupo passou a noite ao relento, mas sentia-se que os júbilos do Reino de Deus agora os dominavam. Todos se interessavam pelas descrições de Maria, devoravam-lhe as exortações, contagiados de sua alegria e de sua fé. Chegados à cidade, foram conduzidos ao vale dos leprosos, que ficava distante, onde Madalena perpetrou com espontaneidade de coração. Seu espírito recordava as lições do Messias e uma coragem indefinível se assenhoreara de sua alma.
Dali em diante, todas as tardes, a mensageira do Evangelho reunia a turba de seus novos amigos e lhes dizia o ensinamento de Jesus. Rostos ulcerados enchiam-se de alegria, olhos sombrios e tristes tocavam-se de nova luz. Maria lhes explicava que Jesus havia exemplificado o bem até a morte, ensinando que todos os seus discípulos deviam ter bom ânimo para vencer o mundo. Os agonizantes arrastavam-se até junto dela e lhe beijavam a túnica singela. A filha de Magdala, lembrando o amor do Mestre, tomava-os em seus braços fraternos e carinhosos.
Em breve tempo, sua epiderme apresentava, igualmente, manchas violáceas e tristes. Ela compreendeu a sua nova situação e recordou a recomendação do Messias de que cimente sabiam viver os que sabiam imolar-se. E experimentou grande gozo, por haver levado aos seus companheiros de dor uma migalha de esperança. Desde a sua chegada, em todo o vale se falava daquele Reino de Deus que a criatura devia edificar no próprio coração. Os moribundos esperavam a morte com um sorriso ditoso nos lábios, os que a lepra deformara ou abatera guardavam bom ânimo, nas fibras mais sensíveis.
Sentindo-se ao termo de sua tarefa meritória, Maria de Magdala desejou rever antigas afeições de seu circulo pessoal, que se encontravam em Éfeso. Lá estavam João e Maria, além de outros companheiros dos júbilos cristãos. Adivinhava que as suas últimas dores terrestres vinham muito próximas; todavia, deliberou pôr em prática o seu humilde desejo.
Nas despedidas, seus companheiros de infortúnio material vinham suplicar-lhe os derradeiros conselhos e recordações. Envolvendo-os no seu carinho, a emissária do Evangelho lhes dizia apenas:
– Jesus deseja intensamente que nos amemos uns aos outros e que participemos de suas divinas esperanças, na mais extrema lealdade a Deus!...
Dentre aqueles doentes, os que ainda se equilibravam pelos caminhos lhe traziam o fruto das esmolas escassas, as crianças abandonadas vinham beijar-lhe as mãos.
Na fortaleza de sua fé, a ex-pecadora abandonou o vale, afastando-se de suas choupanas misérrimas, através das estradas ásperas. A peregrinação foi-lhe difícil e angustiosa. Para satisfazer aos seus intentos recorreu à caridade, sofreu penosas humilhações, submeteu-se ao sacrifício. Observando as feridas pustulentas, que substituíam a sua antiga beleza, alçava-se em reconhecer que seu espírito não tinha motivos para lamentações. Jesus a esperava e sua alma era fiel.
Realizada a sua aspirarão, por entre dificuldades infinitas, Maria achou-se, um dia, às portas da cidade; mas invencível abatimento lhe dominava os centros de força física. No justo momento de suas efusões afetuosas, quando o casario de defeso se lhe desdobrava à vista, seu corpo alquebrado negou-se a caminhar. Modesta família de cristãos do subúrbio recolheu-a a uma tenda humilde, caridosamente. Madalena pôde ainda rever amizades bem caras, consoante seus desejos. Entretanto, por largos dias de padecimentos, debateu-se entre a vida e a morte.
Uma noite, atingiram o auge as profundas dores que sentia. Sua alma estava iluminada por brandas reminiscências e, não obstante seus olhos se acharem selados pelas pálpebras intumescidas, via com os olhos da imaginação o lago querido, os companheiros de fé, o Mestre bem-amado. Seu espírito parecia transpor as fronteiras da eternidade radiosa. De minuto a minuto, ouvia-se-lhe um gemido surdo, enquanto os irmãos de crença lho rodeavam o leito de dor, com as preces sinceras de seus corações amigos e desvelados.
Em dado instante, observou-se que seu peito não mais arfava. Maria, no entanto, experimentava consoladora sensação de alívio. Sentia-se sob as árvores de Cafarnaum e esperava o Messias. As aves cantavam nos ramos próximos e as ondas sussurrantes vinham beijar-lhe os pés. Foi quando viu Jesus aproximar-se, mais belo do que nunca. Seu olhar tinha o reflexo do céu e no semblante trazia um júbilo indefinível. O Mestre estendeu-lhe as mãos e ela se prosternou, exclamando, como antigamente:
– Senhor!...
Jesus recolheu-a, brandamente, nos braços e murmurou:
– Maria, já passaste a porta estreita!... Amaste muito! Vem! Eu te espero aqui!
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