Livro: Luz do Mundo
Pelo Espírito Amélia Rodrigues
Psicografia: Divaldo P. Franco
— "Se é pecador, não sei. Uma coisa sei: eu
era cego e agora vejo." [1]
A frase lhe escorreu dos lábios cantantes modulada
nas vibrações dos sorrisos. E era um desafio. Respondendo à ardilosa indagação
dos intérpretes da Lei, dos fariseus, superava qualquer astúcia com as
soberanas argumentações da Verdade.
Aqueles olhos, até há pouco apagados, agora,
transparentes e iluminados, viam. Não se acostumaram sequer ainda com a
contemplação da paisagem: os detalhes se perdiam na exuberância de cores e na
diversidade das formas. O Astro-Rei irizando com mil matizes, dantes jamais
sonhados, fulgurava solto no céu claro, imenso, inimaginável para ele. A
alegria de todas as coisas em festa num banquete deslumbrante para aquela visão
que sofrera os longos, demorados anos de escuridão...
Tudo em mensagem de encantamento. O homem, o ser
humano, no entanto, lhe parecia muito triste naquele concerto de belezas
indescritíveis: a folha, a flor, a gramínea verde, o vetusto arvoredo, a túnica
marrom-esverdeada-escura dos montes altaneiros ao longe, a alegria da face das
crianças e os pesados crepes invisíveis sobre o rosto dos homens.
Sim, fora um nato-cego.
Criado na cegueira do mundo identificava todos os
ruídos e as formas que seus dedos ágeis apalpavam, compondo modelos que a
mente, no entanto, não podia conceber. A realidade lhe penetrava, exigindo
novas conceituações.
Passavam os anos e a sua dor se fixava nas carnes
do desespero íntimo, como cravos de ira e mágoa.
A escudela de esmola nas mãos e a voz lamentosa em rogativa.
A escudela de esmola nas mãos e a voz lamentosa em rogativa.
Aquele caminho entre a piscina do Enviado e o seu
lar de pobreza, fizera-o e o refizera quantas
vezes! A esperança se apagara de sua vida, anulando quase o sonho de
felicidade... e vivia.
* * *
A piscina de Siloé se tornara famosa desde os dias
do profeta Isaías, que elogiara as suas águas. Aquelas linfas atravessavam
grande distância, em canal rasgado abrupto na rocha viva, desde os tempos de
Ezequias.
Há muito, infelizes e enfermos lhe buscavam,
esperançosos, c mergulho, guardando esperanças de refazimento.
As águas cantantes se renovavam e as massas de
enfermos se multiplicavam.
Aquele outubro estava já ardente e o pó pairava no
ar morno do dia sem ventos refrescantes.
As estradas estavam movimentadas pois que as Festas
logo mais começariam em Jerusalém, dadivosas.
Ele deixara as paragens da querida Galiléia para, transpondo as fronteiras, atingir a Judéia onde sabia estarem reservadas muitas dores...
Ele deixara as paragens da querida Galiléia para, transpondo as fronteiras, atingir a Judéia onde sabia estarem reservadas muitas dores...
Os companheiros seguiam-No animados, desejosos de
penetrar-Lhe todas as lições e integralmente o ministério, que, às vezes, lhes
parecia complexo demais para suas mentes desacostumadas a incursões mais
profundas no raciocínio.
Deslumbravam-se sempre, logicavam raramente. O pão
que dos Seus lábios caía na boca dos seus corações se apresentava em algumas
circunstâncias azedo, desagradável. Estar com Ele era vibrar de felicidade e
sofrer de ansiedades incontroláveis. Ele era capaz de tudo, e o demonstrara
vezes sem conta. No entanto, falava também do Pai, e das Suas dores, lutas e a
paixão. . . A que paixão, se referia, não O compreendiam.
Era sábado! A Judéia, à semelhança da Galiléia e
talvez mais zelosa, era ufana em manter as exigências da forma, da aparência.
Guardar o dia de descanso era mais importante do que se guardar das paixões.
Invariavelmente, o israelita, ali, era considerado pela maneira como observava
o "Dia do Senhor" e, todavia, muitas conveniências podiam modificar o
próprio Estatuto que se deveria cumprir à risca.
— "Mestre, quem pecou para que este homem
nascesse cego? ele ou seus pais?"
A interrogação dos companheiros se fundamentava.
As enfermidades graves são resgates de crimes que
passaram sem punição, não corrigidos, ocultos...
Sabia-se que o homem o é como procedeu em vida anterior e que cada um se faz o construtor do edifício da própria vida. Cada corpo, cada estado de emoção e de espírito, a felicidade ou a desdita são elaborações próprias, senão deste, de um avatar anterior. Logo, a interrogação oportuna.
Sabia-se que o homem o é como procedeu em vida anterior e que cada um se faz o construtor do edifício da própria vida. Cada corpo, cada estado de emoção e de espírito, a felicidade ou a desdita são elaborações próprias, senão deste, de um avatar anterior. Logo, a interrogação oportuna.
O Mestre fitou o homem de olhos em trevas e se
apiedou.
— "Nem ele, nem seus pais pecaram — elucidou
com eloquência o Amigo Divino. — Mas isto se deu para que as obras de Deus nele
sejam manifestadas."
Os homens — crianças espirituais na maioria —
desejam a fé que penetra pelos olhos e exigem fatos que não podem entender. O
milagre — ou derrogação das leis naturais — os atrae pelo maravilhoso. Raros se
aprofundam em descobrir fora da aparência a mecânica da sua execução. Era
necessário, portanto, atender a esses homens, ingênuos que facilmente se fazem
maus, ignorantes que se podem revelar bons.
Sem débitos, sem culpas, aquele homem, por amor
escolhera a provação da cegueira para que o seu Senhor pudesse ser conhecido,
revelado, sem modificar as Leis da Justiça.
Há um estranho silêncio entre os que contemplam o
cego e fitam o Galileu Sublime.
"Cuspiu sobre o pó" e fez uma singular
pomada que aplicou nos olhos fechados do cego, e disse: — "Vai lavar-te no
tanque de Siloé."
* * *
"Lavei-me e comecei a enxergar" — narrou
o homem aos que o investigavam, coléricos.
— Conheces esse homem?
— Não.
— Onde se encontra agora?
— Não sei.
— Que te fez Ele?
— Já disse: "Aquele homem, chamado Jesus, fez
lodo, ungiu-me os olhos e disse-me: vai a Siloé e lava-te; fui, lavei-me e
fiquei vendo." — E nasceste cego? — Sim, todos aqui me conhecem. Uns
diziam que era outrem, comigo parecido; não, sou eu mesmo.
A ira espuma veneno e a astúcia tece a rede das
ciladas.
Os pais do ex-cego temeram e, tremendo, mandaram
que o interrogassem outra vez.
— Podemos expulsar-te e aos teus da Sinagoga.
— Eu sei.
—Ele é um pecador, pois curou num sábado; não vem
de Deus, porque desrespeita as Leis de Deus...
— Não sei, não sei. "Se é um pecador não sei.
Uma coisa sei: eu era cego e agora vejo."
—"É necessário que façamos a obra do que me
enviou, enquanto é dia; vem a noite, quando ninguém pode trabalhar. Estando eu
no mundo, sou a luz do mundo."
Aquele homem fora lançado fora.
Testemunhara a verdade. Preferira o abandono à mentira
e o desamparo à ilusão.
Era cego e agora via e via corretamente.
— "Crês tu no Filho do Homem?" —
Interrogou-lhe Jesus ao reencontrá-lo.
— Quem é ele Senhor, para que eu creia nele?
— "Já o viste, e é ele quem fala
contigo."
— "Creio, Senhor."[2]
— Teus olhos veem o Esperado. Rejubila-te. Vês e
compreendes.
A Natureza parece cantar a música da sua alegria.
O Rabi se alegra, também, e fala:
— "Eu vim a este mundo para um juízo, a fim de
que os que não veem, vejam; e os que veem se tornem cegos."
Há duas cegueiras: a dos olhos do corpo e a do
espírito.
Ele se dirigiu aos Seus e lhes falou da Sua ligação
com o Pai e da cegueira dos que vendo não enxergam porque não distinguem as
sombras da luz...
Ainda agora os cegos piores não distinguem.
— Quem pecou? — perguntam.
O espírito andarilho das estradas do Infinito,
seguindo na direção do Amanhã, sofrendo em paz e paciência se recupera e ressarce.
Renascer e recomeçar a vida para se libertar.
A luz clareia e penetra, espancando as trevas.
Muitos preferem a ignorância para não carregar a
luz da responsabilidade.
Jesus é a luz do mundo.
... Era um cego de nascença e, no entanto, viu.
... Era outubro e junto ao Templo, próximo à
piscina de Siloé, à luz do sol ardente, Ele se fez a luz do mundo, desde então,
até sempre.
Luz do Mundo!