Continuação da leitura do Livro "Boa Nova" de Humberto de Campos
psicografada por Chico Xavier
COMENTÁRIO DO POSTER: Esse capítulo, que descreve de forma comovente a vida de Maria de Nazaré, por ser muito extenso foi dividido em três partes:
Após a separação dos discípulos, que se dispersaram por lugares diferentes, para a difusão da Boa-Nova, Maria retirou-se para a Batanéia, onde alguns parentes mais próximos a esperavam com especial carinho.
Os anos começaram a rolar, silenciosos e tristes, para a angustiada
saudade de seu coração.
Tocada por grandes dissabores, observou que, em tempo rápido, as
lembranças do filho amado se convertiam em elementos de ásperas discussões
entre os seus seguidores. Na Batanéia, pretendia-se manter uma certa
aristocracia espiritual, por efeito dos laços consanguíneos que ali a prendiam,
em virtude dos elos que a ligavam a José. Em Jerusalém, degladiavam-se os
cristãos e os judeus, com Veemência e acrimônia. Na Galiléia, os antigos
cenáculos simples e amoráveis da natureza estavam tristes e, desertos.
Para aquela mãe amorosa, cuja alma digna observava que o vinho generoso
de Cana se transformara no vinagre do martírio, o tempo assinalava sempre uma
saudade maior no mundo e uma esperança cada vez mais elevada no céu.
Sua vida era uma devoção incessante ao rosário imenso da saudade, às
lembranças mais queridas. Tudo que o passado feliz edificara em seu mundo
interior revivia na tela de suas lembranças, com minúcias somente conhecidas do
amor, e lhe alimentavam a Seiva da vida.
Relembrava, o seu Jesus pequenino, como naquela noite de beleza
prodigiosa, em que o recebera nos braços maternais, iluminado pelo mais doce
mistério. Figurava-se-lhe escutar ainda o balido das ovelhas que vinham
apressadas acercar-se do berço que se formara de improviso. E aquele primeiro
beijo, feito de carinho e de luz? As reminiscências envolviam a realidade
longínqua de singulares belezas para o seu coração sensível e generoso. Em
seguida, era o rio das recordações desaguando, sem cessar, na sua alma rica de
sentimentalidade e ternura. Nazaré lhe voltava à imaginação, com as suas
paisagens de felicidade e de luz. A casa singela, a fonte amiga, a sinceridade
das afeições, o lago majestoso e, no meio de todos os detalhes, o filho
adorado, trabalhando e amando, no erguimento da mais elevada concepção de Deus,
entre os homens da Terra. De vez em quando, parecia vê-lo em seus sonhos repletos
de esperança. Jesus lhe prometia o júbilo encantador de sua presença e
participava da caricia de suas recordações.
A esse tempo, o filho de Zebedeu, tendo presentes as observações que o
Mestre lhe fizera da cruz, surgiu na Batanéia, oferecendo àquele espírito
saudoso de mãe o refúgio amoroso de sua proteção. Maria aceitou o oferecimento,
com satisfação imensa.
E João lhe contou a sua nova vida. Instalara-se definitivamente em
Éfeso, onde as ideias cristãs ganhavam terreno entre almas devotadas e sinceras.
Nunca olvidara as recomendações do Senhor e, no intimo, guardava aquele titulo
de filiação como das mais altas expressões de amor universal para com aquela
que recebera o Mestre nos braços veneráveis e carinhosos.
Maria escutava-lhe as confidências, num misto de reconhecimento e de
ventura.
João continuava a expor-lhe os seus planos mais insignificantes.
Levá-la-ia consigo, andariam ambos na mesma associação de interesses
espirituais. Seria seu filho desvelado, enquanto que receberia de sua alma generosa
a ternura maternal, nos trabalhos do Evangelho. Demorara-se a vir, explicava o
filho de Zebedeu, porque lhe faltava uma choupana, onde se pudessem abrigar;
entretanto, um dos membros da família real de Adiabene, convertido ao amor do
Cristo, lhe doara uma casinha pobre, ao sul de Éfeso, distando três léguas
aproximadamente da cidade. A habitação simples e pobre demorava num
promontório, de onde se avistava o mar. No alto da pequena colina, distante dos
homens e no altar imponente da Natureza, se reuniriam ambos para cultivar a
lembrança permanente de Jesus. Estabeleceriam um pouso e refúgio aos
desamparados, ensinariam as verdades do Evangelho a todos os espíritos de boa
vontade e, como mãe e filho, iniciariam uma nova era de amor, na comunidade universal.
Maria aceitou alegremente.
Dentro de breve tempo, instalaram-se no seio amigo da Natureza, em
frente do oceano. Éfeso ficava pouco distante; porém, todas as adjacências se
povoavam de novos núcleos de habitações alegres e modestas. A casa de João, ao
cabo de algumas semanas, se transformou num ponto de assembleias adoráveis,
onde as recordações do Messias eram cultuadas por espíritos humildes e
sinceros.
Maria externava as suas lembranças. Falava dele com maternal
enternecimento, enquanto o apóstolo comentava as verdades evangélicas,
apreciando os ensinos recebidos. Vezes inúmeras, a reunião somente terminava
noite alta, quando as estrelas tinham maior brilho. E não foi só. Decorridos
alguns meses, grandes fileiras de necessitados acorriam ao sitio singelo e
generoso. A noticia de que Maria descansava agora entre eles espalhara um
clarão de esperança por todos os sofredores. Ao passo que João pregava na
cidade as verdades de Deus, ela atendia, no pobre santuário doméstico, aos que
a procuravam, exibindo-lhes suas úlceras e necessidades·.
Sua choupana era, então, conhecida pelo nome de “Casa da Santíssima”.
O fato tivera origem em certa ocasião, quando um miserável leproso,
depois de aliviado em suas chagas, lhe osculou as mãos, reconhecidamente murmurando:
—“Senhora, sois a mãe de nosso Mestre e nossa Mãe Santíssima”.
A tradição criou raízes em todos os espíritos. Quem não lhe devia o
favor de uma palavra maternal nos momentos mais duros? E João consolidava o
conceito, acentuando que o mundo lhe seria eternamente grato, pois Fora pela
sua grandeza espiritual que o Emissário de Deus pudera penetrar a atmosfera
escura e pestilenta do mundo para balsamizar os sofrimentos da criatura, Na sua
humildade sincera, Maria se esquivava às homenagens afetuosas dos discípulos de
Jesus, mas aquela confiança filial com que lhe reclamavam a presença era para
sua alma um brando e delicioso tesouro do coração. O titulo de maternidade
fazia vibrar em seu espírito os cânticos mais doces. Diariamente, acorriam os
desamparados, suplicando a sua assistência espiritual. Eram velhas trôpegas e
desenganadas do mundo, que lhe vinham ouvir as palavras confortadoras e
afetuosas, enfermos que invocavam a sua proteção, mães infortunadas que pediam
a bênção de seu carinho.
— “Minha mãe — dizia um dos mais aflitos — como poderei vencer as minhas
dificuldades? Sinto-me abandonado na estrada escura da vida...”.
Maria lhe enviava o olhar amoroso da sua bondade, deixando nele
transparecer toda a dedicação enternecida de seu espírito maternal.
—“Isso também passa! — dizia ela, carinhosamente — só o Reino de Deus
bastante forte para nunca passar de nossas almas, como eterna realização do
amor celestial.”.
Seus conceitos abrandavam a dor dos mais desesperados, desanuviavam o
pensamento obscuro dos mais acabrunhados.
A igreja de Éfeso exigia de João a mais alta
expressão de sacrifício pessoal, pelo que, com o decorrer do tempo, quase
sempre Maria estava só, quando a legião humilde dos necessitados descia o
promontório desataviado, rumo aos lares mais confortados e felizes. Os dias e
as semanas, os meses e os anos passaram incessantes, trazendo-lhe as lembranças
mais ternas. Quando sereno e azulado, o mar lhe fazia voltar memória o Tiberíades
distante. Surpreendia no ar alquiles perfumes vagos que enchiam a alma da
tarde, quando seu filho, de quem nem um instante se esquecia, reunindo os
discípulos amados, transmitia ao coração do povo as louçanias da Boa-Nova. A
velhice não lhe acarretara nem cansaços, nem amarguras. A certeza da proteção divina
lhe proporcionava ininterrupto consolo. Como quem transpõe o dia em labores
honestos e proveitosos, seu coração experimentava grato repouso, iluminado pelo
luar da esperança e pelas estrelas fulgurantes da crença imorredoura. Suas
meditações eram suaves colóquios com as reminiscências do filho muito amado.
Súbito recebeu noticias de que um período de dolorosas perseguições se
havia aberto para todos os que fossem fiéis à doutrina do seu Jesus divino.
Alguns cristãos banidos de Roma traziam a Éfeso as tristes informações. Em
obediência aos éditos mais injustos, escravizavam-se os seguidores do Cristo,
destruíam-se-lhes os lares, metiam-nos a ferros nas prisões. Falava-se de
festas públicas, em que seus corpos eram dados como alimento a feras
insaciáveis, em horrendos espetáculos.
Então, num crepúsculo estrelado, Maria entregou-se às orações, como de
costume, pedindo a Deus por todos aqueles que se encontrassem em angústias do
coração, por amor de seu filho.
Embora a solenidade do ambiente, não se sentia só; uma como força
singular lhe banhava a alma toda. Aragens suaves sopravam do oceano, espalhando
os aromas da noite que se povoava de astros amigos e afetuosos e, em poucos
minutos, a lua plena participava, igualmente, desse concerto de harmonia e de luz.
Enlevada nas suas meditações, Maria viu aproximar-se o vulto de um
pedinte.
— “Minha mãe — exclamou o recém-chegado, como tantos outros que
recorriam ao seu carinho venho fazer-te companhia e receber a tua bênção”.
Maternalmente, ela o convidou a entrar, impressionada com aquela voz que
lhe inspirava profunda simpatia. O peregrino lhe falou do céu, confortando-a
delicadamente Comentou as bem-aventuranças divinas que aguardam a todos os
devotados e sinceros filhos de Deus, dando a entender que lhe compreendia as
mais ternas saudades do coração. Maria sentiu-se empolgada por tocante
surpresa. Que mendigo seria alquile que lhe acalmava as dores secretas da alma
saudosa, com bálsamos tão dulçurosos? Nenhum lhe surgira até então para dar;
era sempre para pedir alguma coisa. No entanto, aquele viandante desconhecido
lhe derramava no intimo as mais santas consolações. Onde ouvira aquela voz
meiga e carinhosa, noutros tempos?! Que emoções eram aquelas que lhe faziam
pulsar o coração de tanta caricia? Seus olhos se umedeceram de Ventura, sem que
conseguisse explicar a razão de sua terna emotividade.
Foi quando o hóspede anônimo lhe estendeu as mãos generosas e lhe falou
com profundo acento de amor:
— “Minha mãe, vem aos meus braços!”.
Nesse instante, fitou as mãos nobres que se lhe ofereciam, num gesto da
mais bela ternura. Tomada de comoção profunda, viu nelas duas chagas, como as
que seu filho revelava na cruz e, instintivamente, dirigindo o olhar ansioso
para os pés do peregrino amigo, divisou também ai as vísceras causadas pelos
cravos do suplicio. Não pode mais. Compreendendo a visita amorosa que Deus lhe
enviava ao coração, bradou com infinita alegria:
— “Meu filho”! meu filho! as úlceras que te fizeram!...
E, precipitando-se para ele, como mãe carinhosa e desvelada, quis
certificar-se, tocando a ferida que lhe fora produzida pelo último lançaço,
perto do coração. Suas mãos ternas e solicitas o abraçaram na sombra visitada
pelo luar, procurando sofregamente a úlcera que tantas lagrimas lhe provocara
ao carinho maternal. A chaga lateral também lá estava, sob a caricia de suas
mãos. Não conseguiu dominar o seu intenso júbilo. Num ímpeto de amor, fez um
movimento para se ajoelhar. Queria abraçar-se aos pés do seu Jesus e osculá-los
com ternura. Ele, porém, levantando-se, cercado de um halo de luz celestial, se
lhe ajoelhou aos pés e, beijando-lhe as mãos, disse em carinhoso transporte:
—“Sim, minha mãe, sou eu!... Venho buscar-te, pois meu Pai quer que
sejas no meu reino a Rainha dos Anjos!...”.
Maria cambaleou, tomada de inexprimível ventura. Queria dizer da sua
felicidade, manifestar seu agradecimento a Deus; mais, o corpo como que se lhe
paralisara, enquanto aos seus ouvidos chegavam os ecos suaves da saudação do
Anjo, qual se a entoassem mil vozes cariciosas, por entre as harmonias do céu.
Ao outro dia, dois portadores humildes desciam a Éfeso, de onde
regressaram com João, para assistir aos últimos instantes daquela que lhes era
a devotada Mãe Santíssima.
Maria já não falava. Numa inolvidável expressão de serenidade, por
longas horas ainda esperou a ruptura dos derradeiros laços que a prendiam à
vida material.